As memórias da antiguidade presas nas geleiras ao redor do mundo.
Em meio ao zumbido de máquinas em um laboratório abarrotado na Suíça, François Burgay fala do “céu aberto” sobre o Mont Blanc, o monte mais alto dos Alpes e o maior da Europa. “A 4.200 metros acima do nível do mar, você nunca imaginaria que a noite fosse tão clara”, diz ele. É a ausência de poluição luminosa da Terra que dá ao céu essa característica única.
“Acho que posso falar por muitos dos meus colegas quando digo que para fazer este trabalho você precisa ser essencialmente um explorador”, diz Burgay sorrindo.
O homem é glaciologista, ou seja, um estudioso de geleiras na Universidade Ca’ Foscari de Veneza, na Itália. Ele acampou durante uma semana em agosto de 2016 no icônico pico que separa o país da França. Foi a primeira missão de campo que fez na carreira.
Como parte de um projeto chamado Ice Memory (ou Memória de Gelo, em tradução livre), ele esteve no local para coletar amostras de gelo do glaciar Col du Dome, posteriormente armazenadas no laboratório em Grenoble, na França.
Um dia, esperam os pesquisadores, parte desses núcleos de gelo será levada à Antártida, onde cofres feitos sob medida com neve vão preservar por séculos o conhecimento contido neles.
Após esta primeira missão, a equipe encarou a montanha Illimani na Bolívia, desta vez alcançando uma geleira ao lado de um pico de 6.300 metros de altitude e coletando núcleos que precisaram ser transportados a pé, já que não havia helicópteros disponíveis.
O monte Kilimanjaro, na Tanzânia, é o próximo da lista, com uma expedição planejada para o final deste ano, e mais geleiras ameaçadas virão em seguida, à medida que novos parceiros internacionais aderirem à iniciativa franco-italiana.
Corrida contra o tempo
Pesquisas mostram que as geleiras do mundo têm diminuído dramaticamente há algum tempo, provavelmente devido a mudanças climáticas provocadas pelo homem. O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) das Nações Unidas estima que, se o aquecimento global continuar nesse ritmo, a maior parte da cobertura de gelo do planeta poderá ser perdida até o final do século, com exceção das camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida.
“As geleiras do mundo estão literalmente desaparecendo sob nossos pés”, diz Carlo Barbante, um paleoclimatologista também da Universidade Ca’ Foscari e um dos fundadores do projeto Ice Memory. Para 1,5 bilhão de pessoas que dependem das geleiras para beber água e fazer irrigação, essa é uma situação catastrófica. Mas o gelo também oferece um mundo de informações.
“Nós muitas vezes nos concentramos nas ameaças imediatas trazidas pelo derretimento do gelo, como a falta de água em áreas vulneráveis como o subcontinente indiano”, diz Barbante. “Mas, como cientistas que estudam o gelo como um arquivo, entendemos que também estamos perdendo informações fundamentais. Sentimos que precisávamos fazer alguma em relação a isso.”
Juntamente com climatologistas franceses e glaciologistas, Barbante e sua equipe partiram para resgatar amostras de gelo das geleiras do mundo. Cada núcleo de gelo representa um arquivo precioso da história que se estende por milhares de anos até o passado.
Presos no gelo estão minúsculas bolhas de gás, partículas de poeira, pólen e até minúsculos organismos que podem fornecer uma janela fundamental para o estudo de eventos que aconteceram antes de os registros humanos começarem.
Atualmente, os pesquisadores extraem um metro por vez dos núcleos de gelo, perfurando a superfície da geleira, realizando uma primeira análise visual do núcleo antes de prepará-lo para o transporte em contêineres que normalmente têm 10 cm de largura.
Esse processo é repetido centenas de vezes à medida que os pesquisadores vão cada vez mais fundo para capturar camadas mais antigas de gelo, chegando a atingir profundidades extremas, de até 900 metros.
À medida que eles cavam, cada metro de gelo se mostra mais comprimido pelo peso das camadas de cima, o que significa que conserva produtos químicos e outras partículas acumuladas por períodos mais longos.
Análise detalhada
No laboratório, os núcleos são limpos e as amostras são derretidas lentamente em um ambiente controlado, para que os glaciologistas possam analisar a água e identificar nela metais ou gases, como o dióxido de carbono.
“O gelo também funciona como um paleotermômetro”, diz Burgay. “Ele registra as temperaturas do ambiente onde uma certa cobertura de neve caiu em algum momento.”
Usando essas informações, os pesquisadores podem reconstruir a evolução do clima da Terra ao longo de milênios, fornecendo informações valiosas que os cientistas podem usar para ‘reproduzir’ as mudanças climáticas.
As máquinas no laboratório de Burgay, por exemplo, estão atualmente buscando vestígios de ferro em partes de gelo com 6.000 anos de idade, extraído de um núcleo da Groenlândia. Os níveis mínimos de metal podem dar pistas sobre a atividade vulcânica antiga que lançou poeira metálica na atmosfera.
Após a limpeza, os núcleos restantes são preparados para armazenamento de longo prazo no repositório.
“Pode-se argumentar que os núcleos de gelo estariam seguros em uma geladeira comercial em Veneza ou Paris”, diz Barbante.
“Mas não estamos pensando a curto prazo. Nós não podemos prever se daqui a 200 anos alguém ainda vai poder pagar a conta de energia”. A história, segundo ele, mostra como conflitos e mudanças de prioridade de pesquisas, além dos desastres naturais, dificultam a previsão de futuro de qualquer empreendimento científico de longo prazo.
Isso tem levado os cientistas a buscarem uma solução mais definitiva.
“A Antártica é o lugar mais seguro para armazenar as amostras”, diz Barbante, “Primeiro, porque é uma geladeira natural, com temperaturas médias anuais em torno de -50ºC, e também porque não pertence a nenhum país específico. É a região ideal para empreendimentos científicos pacíficos”.
Assinado em 1959 e em vigor desde 1961, o Tratado da Antártida reúne 53 países ativos na região, estipulando que o território “será utilizado apenas para fins pacíficos” e que “observações científicas e resultados dos experimentos na Antártida serão compartilhados e disponibilizados gratuitamente”.
Enquanto o tratado for mantido, diz Bess Koffmann, geóloga da Universidade do Maine, nos EUA, a Antártica continuará sendo um lugar seguro. O documento, porém, deve ser renegociado daqui a 30 anos.
“Há sempre o risco de um país se recusar a assinar o acordo para tirar proveito dos recursos inexplorados da região, como os minerais”, alerta Koffmann.
Criar um santuário para o gelo que está desaparecendo também pode oferecer benefícios inimagináveis hoje. À medida que novas ferramentas e tecnologias vão ficando disponíveis, isso pode permitir aos cientistas abrir novas janelas para desbravar o passado do planeta, e talvez até estudar vírus e bactérias antigos preservados no gelo.
Tecnologia
“As tecnologias evoluíram rapidamente nas últimas décadas, e nós agora estamos fazendo medições que nem sonhávamos serem possíveis há 30 ou 40 anos”, diz Koffmann.
Um dia, diz Barbante, as técnicas de imagem serão tão avançadas que “vamos poder analisar os núcleos sem nem precisar tocá-los”.
“Mas, para chegar a esse ponto, é essencial construir repositórios enquanto ainda podemos”, diz Emma Smith, glaciologista e geofísica do Instituto Alfred Wegener, em Bremerhaven, Alemanha. “Estamos perdendo nossas geleiras muito rapidamente, e, sem arquivar as informações que elas contêm, simplesmente não estamos nos dando a chance de entender as mudanças que podem acontecer no futuro.”
Os cientistas geralmente se concentram no gelo polar porque é onde eles podem descobrir os registros mais antigos, diz Smith. “Mas se você observar os núcleos de gelo regionais de geleiras menores, poderá ver mudanças em uma escala muito menor”. Isso significa criar uma imagem detalhada dos climas locais, o que não seria possível analisando somente o gelo polar.
A equipe do Ice Memory espera ter uma grande variedade de amostras prontas para serem armazenadas na Antártida até 2020, em um cofre construído sob medida perto da estação de pesquisa franco-italiana Concordia.
Os pesquisadores planejam empregar um método que foi testado com sucesso na Groenlândia, que envolve escavar um fosso e inserir nele um balão inflável que será usado como molde para o depósito.
“Em seguida, colocamos a neve que havíamos removido para criar o fosso de volta na estrutura e esperamos ela endurecer por alguns dias”, explica Barbante. O balão é então esvaziado nesse ponto e pode ser facilmente removido.
“Dessa forma, criamos uma estrutura natural de baixo custo e sem impacto ambiental.”
Barbante admite que depois de uma ou duas décadas a estrutura provavelmente vai diminuir sob o peso de mais neve caindo sobre ela. “Mas os núcleos podem ser movidos com relativa facilidade para uma nova estrutura construída da mesma maneira”, acrescenta.
O projeto já conquistou o apoio da Unesco, e Barbante diz que um número crescente de equipes, incluindo de países como Rússia, Estados Unidos e China, já está coletando material extra durante suas expedições independentes, para que possam contribuir com o projeto no futuro.
De acordo com projeções atuais, não importa o que façamos agora para reduzir as emissões globais de gases do efeito estufa, muitas das geleiras do mundo têm pouca esperança de sobreviver além de algumas gerações humanas, com parte delas perdendo um terço de seu gelo no próximo século. Logo, essas poucas centenas de metros de núcleos de gelo poderão ser tudo o que restou da informação antiga armazenada no gelo.
Os esforços de alguns destemidos exploradores que se aventuram nas montanhas para coletar esses núcleos estão ajudando a garantir que os segredos contidos neles estejam disponíveis para as próximas gerações decifrarem.
Fonte: BBC
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