quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Fumaça em todos os lugares

Nesta semana, o aeroporto de Porto Velho teve que ser fechado por conta do incêndio que invadiu seu perímetro, e por pouco não desviou de um depósito de combustível. Palmeiras chamuscadas agora recebem os visitantes em suas chegadas. Na cidade, a fumaça é percebida mesmo dentro de grandes shopping centers e de fechados quartos de hotel. O número de pessoas internadas em hospitais estaduais com pneumonia, tosse severa e outros problemas respiratórios triplicou na última semana, segundo reportagens locais.
Na sexta-feira de manhã (23/08), a vida nas ruas parecia normal; as pessoas não se precaviam para se protegerem da fumaça. Em uma banca de frutas na movimentada Rua Imigrantes, Laine Polinaria de Oliveira atendia um fluxo constante de fregueses comprando abacaxi, mamão, melancia e goiaba.
“Os negócios estão normais, mas todo mundo está falando sobre os incêndios”, disse ela. “Estamos acostumados com incêndios nessa época do ano, mas neste ano está bem pior que nos anteriores.
Vinda de Nova Mamoré, uma pequena cidade a 300 quilômetros de distância onde os incêndios são ainda mais intensos que em Porto Velho, Laine diz estar particularmente preocupada com seu filho de 9 anos inalando o ar sujo.

Rota de distribuição em chamas

Situado não muito longe da fronteira com a Bolívia, ao longo do rio Madeira, um afluente de 3,2 mil quilômetros do Amazonas, Porto Velho é um importante centro de distribuição no noroeste da Amazônia. A fumaça dos incêndios leva a uma baixa visibilidade para os operadores dos barcos no rio, aumentando o risco de colidirem com outros barcos ou encalharem em bancos de areia expostos.
Jerrison da Silva Cruz, operador de barco local e pescador, relatou um incidente na quarta-feira à noite, quando ele e a tripulação estavam a bordo de um navio viajando rio acima e se depararam com uma parede de fogo em uma curva acentuada no rio, a cerca de 12 horas de Porto Velho.
“Não conseguíamos ver nada por causa da fumaça,” ele conta. O capitão do navio decidiu que o melhor a se fazer era ficar no mesmo lugar, próximo à terra que já tinha sido queimada para dar lugar às fazendas de melancia, e esperar a fumaça abaixar, o que em certo momento aconteceu.
Enquanto o vasto rio Madeira pode agir como uma barreira contra os incêndios, as pequenas estradas que cruzam a enorme floresta amazônica fornecem pouca proteção para quem viaja de carro.

Povos indígenas em perigo?

Ainda mais preocupante é o destino das muitas comunidades indígenas da Amazônia. Um milhão de indígenas vivem na parte brasileira da bacia amazônica, muitos em total isolamento do mundo exterior.
“Ninguém sabe o que está acontecendo com eles… Eles não têm como chamar um bombeiro para apagar o fogo”, diz Ivaneide Bandeira Cardoso, conhecida fundadora do Kanindé, um grupo de defesa de comunidades indígenas baseado em Porto Velho.
Cardoso e muitos outros dizem que o presidente Jair Bolsonaro é o responsável direto pelo agravamento dos incêndios florestais por toda bacia amazônica  neste ano. Desde que assumiu o poder no começo do ano, Bolsonaro deixou claro que prioriza os interesses de indústrias que querem acesso livre às terras protegidas. Críticos dizem que ele encorajou fazendeiros e agricultores a queimar ainda mais terra ao afrouxar uma lei, sinalizando que seu governo não multará apropriação ilegal de terras.
“O que causa essa tragédia são as palavras do presidente”, diz Cardoso, acrescentando que, apesar de as maiores vítimas desses incêndios serem os indígenas e a natureza, é uma “tragédia que afeta toda a humanidade”, já que a Amazônia tem um papel importante no ecossistema global como sumidouro de carbono para deter os efeitos das mudanças climáticas.
Bolsonaro, em sua defesa, diz que as críticas às ações de seu governo na Amazônia são histéricas. Sem evidência nenhuma, ele até sugeriu que ONGs causam incêndios deliberadamente para “trazer problemas para ao Brasil.”
Enquanto Bolsonaro tem forte apoio em sua base conservadora, muitos brasileiros parecem extremamente preocupados que as ações do governo prejudicarão a reputação do Brasil internacionalmente e poderia levar até uma dificuldade econômica se outros países decidirem boicotar produtos brasileiros, incluindo a carne. Protestos contra as políticas governamentais na Amazônia estão agendadas para acontecerem nos próximos três dias em muitas cidades do Brasil.
Na barraca de frutas em Porto Velho, Laine diz que a atitude em relação às queimadas deliberadas na floresta está mudando entre os cidadãos comuns. “Isso é algo que as pessoas fazem há muitos anos,” ela diz. “Mas agora podemos realmente sentir as repercussões dessa prática e as pessoas estão mudando de opinião sobre isso”.
Os moradores em Rondônia parecem não deixar que o ar esfumaçado os impeçam de viver normalmente. Na quinta-feira à noite, uma pequena multidão em um bar na área externa do principal shopping de Porto Velho cantava a todos pulmões com uma banda ao vivo enquanto a fumaça invadia as ruas da cidade. O nome da canção? “Todo mundo vai sofrer”.
Fonte: National Geographic – Stefan Lovgren

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Amazônia levará séculos para se recuperar das queimadas, afirma bióloga.

Em meio à comoção nacional e internacional com os incêndios de grandes proporções que se alastraram pelo norte do Brasil, a Amazônia segue ardendo. Autoridades demoram a agir para conter as chamas e, enquanto isso, o maior patrimônio natural dos brasileiros vai sofrendo perdas irreparáveis. Mesmo quando sobrevive ao fogo, a Floresta Amazônica não volta a ser o que era. Cientistas ainda não sabem quanto tempo ela demora para se regenerar.

Estudos recentes apontam que a recuperação pode levar centenas de anos. Após queimar, a maior floresta tropical do planeta até continua em pé, mas não sem pagar um alto custo. Metade das árvores não resiste às labaredas — 50% de mortalidade é considerada uma taxa muito alta. Árvores gigantes acabam morrendo e cedem lugar a plantas mais novas, menores e de tronco bem mais fino. Com isso, a capacidade de armazenar carbono fica comprometida.
É inimaginável o tanto de CO2 que a floresta armazena. “Se pegar todos os nove países da Amazônia, não só o Brasil, a quantidade de dióxido de carbono é equivalente a 100 anos de emissões de combustíveis fósseis dos Estados Unidos”, afirma a bióloga Erika Berenguer em entrevista à GALILEU. “Assim que a área é desmatada e queimada, todo o carbono que estava nos troncos vai direto para a atmosfera, contribuindo para as mudanças climáticas.”
A pesquisadora das universidades de Oxford e de Lancaster, no Reino Unido, é especialista em degradação de florestas tropicais pela ação humana. No mesmo em dia em que conversou por telefone com a reportagem diretamente de Madagascar, onde passava férias, Berenguer postou em seu perfil no Facebook um texto explicativo com respaldo científico para divulgar as informações essenciais sobre o que está acontecendo na Amazônia.
A postagem viralizou e já reúne mais de 54 mil compartilhamentos e 10 mil comentários. “Há 12 anos eu trabalho na Amazônia e há 10 pesquiso sobre os impactos do fogo na maior floresta tropical do mundo”, escreve a pesquisadora. “Já vi a floresta queimando sob os meus pés mais vezes do que gostaria de lembrar. Me sinto, então, na obrigação de trazer alguns esclarecimentos, enquanto cientista e enquanto brasileira.”
Nada natural
O intuito da pesquisadora com a sua publicação no Facebook era tornar a realidade amazônica um pouco menos distante para a maioria dos brasileiros, que vive em grandes centros urbanos. A biologia evolutiva traz o fato mais crucial — a Floresta Amazônica não está acostumada com o fogo. Ao contrário de outros biomas do Brasil e do mundo, como o Cerrado ou as vegetações nativas da Califórnia e da Austrália, ela não evoluiu submetida a incêndios florestais intensos e recorrentes.
Como a umidade relativa do ar na bacia amazônica varia entre 77% e 88%, o fogo sempre apagou rápido. Não durava muito nem causava grande estrago. Por isso, as árvores não criaram mecanismos de proteção eficientes que as protegessem das labaredas, como as cascas grossas do Cerrado. Na Amazônia, troncos finos não protegem os vasos condutores dos vegetais durante as queimadas, e é essa a causa da alta mortandade de árvores.
Pesquisas de Berenguer e colegas mostram que a metade da floresta que sobrevive ao fogo armazena 40% menos carbono que quando era intocada. Mesmo 30 anos depois, os efeitos ainda são sentidos: a quantidade de carbono armazenada é 25% menor do que a de uma mata que nunca queimou. Estações mais secas como a de 2015 e 2016, causadas pelo fenômeno El Niño, agravam as queimadas. Mas, ainda assim, elas não são naturais.
Não na Amazônia. “Não faz parte da dinâmica. Esse fogo é iniciado pelo ser humano, alguém precisa colocar fogo”, afirma Berenguer. Conforme denunciou uma reportagem da revista Globo Rural no último domingo (25), um grupo de WhatsApp que reunia pelo menos 70 pessoas, entre eles produtores rurais e grileiros, organizou o “Dia do Fogo” no Pará. O Ministério Público e a Polícia Civil de Novo Progresso (PA) investigam o crime ambiental.
Dados do Inpe sobre o desmatamento da Amazônia apontam um aumento de 278% em julho comparado com o mesmo mês do ano passado. Não é coincidência que as queimadas tenham aumentado junto com a derrubada das árvores: elas representam o último estágio antes de uma área que há pouco tempo abrigava vegetação exuberante virar pasto. Há um roteiro que grileiros e latifundiários seguem ao perpetrar seus crimes contra a floresta.
Dia do fogo
Como explica Berenguer, primeiro esses grupos chamam madeireiros para que derrubem e retirem apenas as toras de valor econômico, como o ipê. Depois dão uma verdadeira rasteira no que sobrou da mata por meio do processo apelidado de correntão. “Dois tratores interligados por uma corrente imensa caminham lado a lado e vão levando ao chão tudo que veem pela frente”, conta a pesquisadora.
É preciso deixar os restos e tocos da floresta curtindo ao sol da estação seca por alguns meses até que estejam secos o bastante para queimar. Aí é só organizar a ação com outros madeireiros e o Dia do Fogo toma conta do resto. “Toda a vegetação é destruída, vira cinzas, e com isso dá para plantar capim na área derrubada”, diz a bióloga. E, assim, nosso maior patrimônio é destruído em nome da produção e do consumo de bifes.
O problema é que, muitas vezes, o fogo não para na região afetada pelo desmatamento. Beiras de estrada e clareiras abertas na mata por madeireiros fazem sol e vento penetrarem na floresta — elas ficam mais secas e suscetíveis a queimar. As próprias mudanças climáticas, tão agravadas pelas queimadas na Amazônia, já estão fazendo sua parte: secas mais severas e prolongadas colocam a floresta em risco crescente.
O jeito como o fogo “invasor” consome a Amazônia é muito diferente do que estamos acostumados. Ele não transforma as árvores em grandes tochas nem alcança suas copas: permanece a poucos palmos do chão. Bem baixo, coisa de meio metro de altura, no máximo. Por isso, não é tão difícil contê-lo. Grandes aviões-tanque como o contratado pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, ajudam. Mas não são a técnica mais eficaz.
Por incrível que pareça, a própria floresta oferece a solução. Basta varrer as folhas secas em volta da queimada para que o solo contenha o alastramento. É o processo chamado de aceiro. Estudo recente mostrou que até mesmo trilhas estreitas de formigas cortadeiras são capazes de parar o fogo. Mas o trabalho é cansativo, desgastante, além de muito custoso — e boa parte das operações eram financiadas com recursos do extinto Fundo Amazônia.
Em seu texto nas redes sociais, Berenguer tenta descrever sua dor indescritível sempre que testemunha a Floresta Amazônica, lar da maior biodiversidade do planeta, destruída pelo fogo. Para ela, são cenas traumáticas. “É catastrófico, o cheiro de churrasco e o silêncio profundo não vão sair da minha cabeça jamais”, ela diz.
“A floresta, antes de um verde luxuriante, fica cinza e, de repente, tudo fica silencioso, estranhoa frase””Erika Berenguer, bióloga
“A floresta, antes de um verde luxuriante, fica cinza e, de repente, tudo fica silencioso, estranho. A Amazônia é barulhenta pra caramba, uma cacofonia, mas vira um silêncio mortal. É aterrorizante.” Mais parece um pesadelo, que de tão real, já está trazendo trevas e obscurecendo a luz do dia na maior cidade da América do Sul.
Fonte:

Por que quase metade do Brasil não tem acesso a rede de esgoto.

As 400 ou 500 casas que formam Alcantil, na Paraíba, não têm água encanada. Nunca tiveram. Pelo menos uma vez por mês, o Exército abastece com um carro-pipa algumas cisternas comunitárias espalhadas pelo município de 5,3 mil habitantes e, de lá, baldes e latas d’água completam o serviço.
Em 2003, um projeto capitaneado pelo governo do Estado prometia finalmente levar água para a cidade no semiárido paraibano. Mais de 15 anos depois, entretanto, ele praticamente não saiu do papel.
A obra é a mais antiga da lista de empreendimentos paralisados ou atrasados, financiados pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), hoje a principal fonte de recursos para financiar o saneamento no país.
O setor representa cerca de 5,5% do orçamento do fundo – que é alimentado pelos depósitos compulsórios do equivalente a 8% da remuneração de todos os trabalhadores com carteira assinada do país – e responde, no entanto, por 52,7% das obras paralisadas ou atrasadas bancadas com recursos do FGTS.
O relatório com dados de 2018 elenca 375 empreendimentos só na área de saneamento, em 25 Estados. Isso representa 22,7% do total de obras de saneamento atualmente na carteira do fundo, seja em fase de retorno (pagamento de prestações) ou de desembolso (construção).
Além de projetos que levariam água para o semiárido, também estão listadas uma série de obras de esgotamento sanitário – afinal, apenas 52,4% dos brasileiros têm acesso à rede de esgoto.
Entre elas, empreendimentos em parte da Região Metropolitana de São Paulo, com impacto sobre pelo menos 1,6 milhão de pessoas. Conduzidas pela companhia de saneamento paulista, a Sabesp, a maioria é de 2013.
No total, esses empreendimentos mobilizaram R$ 13 bilhões em empréstimos do fundo.
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), aprovado em 2007, previa para 2033 a universalização dos serviços de água e esgoto. No ritmo atual de investimentos, entretanto, esse prazo foi esticado pelo menos para 2060, de acordo com Ilana Ferreira, especialista em infraestrutura da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Quanto maior for esse tempo, maiores os gastos evitáveis do país com Saúde, já que a falta de saneamento está diretamente ligada à incidência de uma série de doenças – como leptospirose, disenteria bacteriana, esquistossomose, febre tifóide, cólera –, e a perdas em produtividade do trabalho.
A BBC News Brasil conversou com representantes do setor público e privado e com especialistas na área para entender por que tantas cidades no Brasil ainda não têm água tratada ou esgoto. Abaixo, reunimos em quatro pontos os principais motivos citados.

1) Dificuldade de acesso aos recursos já disponíveis

O Brasil investe por ano muito menos do que seria preciso para atingir a meta de universalização do saneamento em 2033. A média entre 2009 e 2014 foi de R$ 9,4 bilhões, quando seriam necessários R$ 15,2 bilhões por ano, conforme os cálculos da CNI.
Ainda assim, na principal fonte de financiamento do setor – o FGTS – sobram recursos.
No início de 2018, o saneamento tinha R$ 6 bilhões disponíveis no orçamento do fundo. No fim do ano, esse número foi revisto e encolheu 33%, para R$ 4 bilhões. Ainda assim, do total, apenas 69,06% (R$ 2,76 bilhões) foram de fato emprestados pelos agentes financeiros habilitados pela Caixa Econômica Federal, que é operadora do FGTS.
A dinâmica não é exceção. Pelo menos desde 2014, o percentual de execução não chega a 70%.
Em 2017, a proporção de recursos efetivamente gastos em relação ao orçamento final foi de 64,8%. Em 2015, de 51,9%.
Isso não acontece, por exemplo, com a área de construção, que tradicionalmente atinge percentuais superiores a 80%. No ano passado, aliás, enquanto o orçamento para o saneamento encolheu, o da área de moradia cresceu, de R$ 53 bilhões para R$ 57,8 bilhões, dos quais 95,27% foram efetivamente emprestados.
“O setor de construção é mais organizado, tem presença (forte) no conselho do FGTS”, diz Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil, organização sem fins lucrativos que monitora o setor.
Essa capacidade de organização ficou clara recentemente, quando o Governo Federal planejava liberar parte do fundo para estimular a economia. O limite de saque acabou sendo reduzido para R$ 500 depois da pressão de empresas de construção civil, que alegaram que, caso fosse disponibilizado um volume maior, faltariam recursos para construção de moradias populares.

Por que sobram recursos do FGTS para o saneamento?

A burocracia é apontada como um dos principais entraves. O tempo médio entre o início do trâmite e a chegada do dinheiro aos cofres das empresas, de acordo com a CNI, é de mais de dois anos (27 meses).
“Quando o recurso sai, a cidade já é outra. Já apareceram novas casas (que não estavam no projeto original)… Como vou fazer desapropriação se não tenho dinheiro?”, diz Marcus Vinícius Neves, presidente da Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe), que reúne as 25 estatais do setor.
A CNI lançou em 2017 um estudo com uma série de propostas para simplificação do processo de empréstimo de recursos do FGTS.
Para se ter ideia de como ele pode ser lento, uma das sugestões era a digitalização da entrega de documentos em um sistema único – já que o sistema da Caixa admitia a entrega on-line de documentos, mas o do Ministério das Cidades, não.
Para o Ministério da Economia, o problema não está nas regras estipuladas pelo Conselho Curador para o fundo. “O tempo despendido para concessão do financiamento decorre do fato de o agente financeiro assumir o risco do crédito perante o FGTS”, diz uma nota do ministério à BBC News Brasil.

2) Projetos mal elaborados

A baixa qualidade técnica dos projetos e os erros recorrentes são outros fatores que explicam o atraso ou mesmo paralisação das obras, diz Édison Carlos, do Trata Brasil.
“A grande diferença entre saneamento e moradia (que acaba tendo acesso mais fácil aos recursos disponíveis) é o projeto. É muito mais fácil construir uma casa do que uma boa rede de coleta”, acrescenta Ilana Ferreira, especialista em economia ambiental.
São estudos que não levam em consideração a estrutura do solo, os índices pluviométricos do município ou o plano de ordenamento territorial (ou seja, quanto a cidade vai crescer e para onde), por exemplo.
Sem uma boa base técnica, a estimativa de custo de muitos projetos acaba sendo pouco realista e falta dinheiro para continuar a obra, ou para investir na manutenção ou na melhoria da infraestrutura.
“Na última avaliação que fizemos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os erros de projeto continuavam sendo uma das principais razões para os atrasos (nas obras de saneamento), mesmo depois de tantos anos (de programa)”, diz Carlos, do Trata Brasil.
O PAC é um capítulo à parte na questão do saneamento. Primeiro, porque boa parte dos recursos disponibilizados pelo programa vinha do Orçamento Geral da União. Ou seja, eram repassados pelo Governo Federal para a realização das obras, uma opção que se tornaria cada vez mais restrita à medida que o déficit nas contas públicas se aprofundasse.
Depois, porque o “boom de investimentos” desse período, que se estendeu até 2014, não se traduziu em uma evolução significativa da cobertura do atendimento.
“O que significa que os recursos foram mal alocados, e que não adianta ter dinheiro sem gestão”, diz Ilana.
O presidente da Aesbe, Marcus Vinícius Neves, minimiza a questão da baixa qualidade técnica dos projetos. Para ele, pesariam mais os “fatos novos”, que geram novos custos e atrasam o cronograma: a descoberta de um sítio arqueológico no local das obras, por exemplo.
Essa foi a justificativa apontada pela Sabesp para o atraso em obras na Região Metropolitana de São Paulo, em bairros como Aricanduva, Arthur Alvim, Carrão, Sapopemba, Cidade Tiradentes, Cidade Líder, Guaianases e Itaim Paulista.
Em nota, a empresa afirmou que, “inicialmente, as ações objeto dos financiamentos feitos com recursos do FGTS foram afetadas porque foi necessário dar prioridade, durante o período de crise hídrica (entre 2014 e 2015), a investimentos voltados à garantia da segurança hídrica”.
“Passado o período crítico de crise, o planejamento das ações de ampliação do sistema de esgotamento sanitário foi reavaliado e, então, as obras foram retomadas. Neste momento seguem seu fluxo normal”, diz a nota.

Baldes e tonéis

No caso de Alcantil, segundo Neves, que também é presidente da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), o problema é que a obra é mais “complexa” do que se previu inicialmente: descobriu-se que o subsolo da cidade era formado por rochas resistentes, o que elevou os custos de perfuração e instalação da infraestrutura e levou a companhia inicialmente responsável pelo projeto a abandoná-lo.
“Já estamos na sétima empresa e na quarta licitação”, ressalta.
Para Ferreira, da CNI, entretanto, esse seria mais um problema de elaboração de projeto, que não previu de forma realista os custos.
Enquanto isso, o município a cerca de 200 km de João Pessoa só pode contar com os carros-pipa do Exército e os poços com dessalinizadores do Programa Água Doce (PAD) para ter acesso a água potável e com poços de água salobra para a chamada “água de gasto”, usada para limpeza, por exemplo.
Quem conta é a Secretária de Desenvolvimento Sustentável e Recursos Hídricos do município, Jancleide Maria do Carmo.
Em casas como a dela, a cisterna ou tanque que ficam do lado de fora contam com uma bomba para levar água do reservatório particular para a torneira.
Mas muita gente segue sobrevivendo só com os baldes e toneis.
Assim como Alcantil, outras 454 cidades pelo Brasil não têm abastecimento de água, de acordo com o último levantamento do Sistema Nacional de Saneamento (Snis), com dados de 2017.

3) Queda de braço entre o público e o privado

Tanto o setor público quanto o privado concordam, de forma geral, que a participação de empresas privadas no saneamento é menor que o necessário.
As empresas públicas muitas vezes têm capacidade limitada de investir, especialmente diante da restrição orçamentária crescente dos Estados. A situação financeira das estatais, muitas com nível de endividamento já elevado, dificulta inclusive a tomada de recursos do FGTS.
“Nós queremos o privado junto conosco”, diz Neves, da Aesbe.
A divergência é sobre como dosar essa participação – com a privatização das empresas públicas de saneamento (que hoje respondem por 75% da população atendida) ou a atuação em paralelo por meio de concessões e parcerias público-privadas.
Crítico da administração pública do saneamento, o economista Claudio Frischtak, presidente da Inter.B Consultoria, acredita que a “captura” das empresas por interesses de servidores concursados, parlamentares dos Estados e governadores responde por boa parte da ineficiência dessas companhias.
Um estudo conduzido pela Inter.B com dados das estatais de saneamento apontou que, entre 26 empresas analisadas (as 25 estatais mais a do Distrito Federal), em 10 casos os aumentos de tarifas entre 2014 e 2017 foram transferidos para aumentos salariais, enquanto os investimentos caíram de forma relevante, de 9,3% até 74,3%.
Neves discorda da avaliação. Para o presidente da Aesbe, o novo regime de governança das estatais instituído em 2016 pela Lei 3.303 tem contribuído para melhorar a administração nas companhias que “ainda precisavam se organizar”, enquanto as câmaras técnicas e jurídicas da associação auxiliam as empresas a elaborar dos projetos ou planejar melhor os investimentos.
Para Ilana, da CNI, a forma como o setor está estruturado favorece a interferência política no setor. A Constituição de 1988 atribuiu a competência do saneamento aos municípios, que, via de regra, não dispõem de recursos para investir. Os prefeitos, então, delegam a tarefa para os Estados, que estão à frente das estatais.
“E esse processo é feito muitas vezes de maneira informal, sem nem contrato”, ressalta a economista.
Essa também é a visão do Ministério do Desenvolvimento Regional. “Hoje, os titulares, autoridades locais das prefeituras, podem estender contratos de programa firmados com as companhias estaduais de saneamento de forma automática que, em muitos casos, são contratos precários e não formalizados”, disse a pasta em nota.
Questionado sobre o projeto do governo para garantir a universalização do serviço, o ministério afirmou que um dos focos é aumentar a participação do setor privado.
“Na visão do Governo Federal, a ampla concorrência trará mais investimentos para o setor de saneamento.”

Privatizar ou estatizar?

Em 2017, o Programa de Parcerias de Investimento (PPI) lançou um projeto de “desestatização” das empresas estaduais de saneamento. A ideia era que o BNDES apoiasse os Estados com estudos técnicos para buscar o melhor modelo para cada lugar: privatização, concessão ou PPP.
Dois anos depois, os estudos ainda não foram divulgados pelo banco e parte dos Estados, após as eleições para governador de 2018, abandonaram o projeto.
Os exemplos práticos alimentam argumentos de ambos os lados do debate.
Há casos de cidades geridas por empresas privadas com péssimos indicadores, como Manaus; de cidades servidas por estatais de capital misto e com bons indicadores: Franca (SP) e Cascavel (PR); e há ainda casos de remunicipalização de serviços que haviam sido concedidos à iniciativa privada, como em Itu (SP), e de privatizações bem sucedidas do ponto de vista da ampliação do atendimento, caso de Uruguaiana (RS).
Internacionalmente, o assunto também está longe de ser consenso.
Há os casos famosos de remunicipalização em Paris e Berlim, que, para aqueles que defendem a manutenção do setor de água e esgoto nas mãos do Estado, mostram que a concessão à iniciativa privada não funciona.
Quem argumenta do lado contrário, por sua vez, afirma que a reestatização em Paris foi influenciada por um forte componente político. Além disso, o contrato não foi interrompido, mas se estendeu até o prazo final de vigência e apenas não foi renovado.
No caso de Berlim, de acordo com um estudo feito pela GO Associados, o problema teria sido a falta de transparência no processo de seleção dos investidores privados. O presidente do Tribunal Constitucional do município foi contratado ao mesmo tempo pela municipalidade para desenhar o projeto de lei e pela companhia privada para assessorar a transação.
O estudo da consultoria brasileira se debruçou sobre 208 casos de remunicipalização que fazem parte de um levantamento do Transnational Institute, da Holanda, para argumentar que, ao contrário do que afirma a instituição internacional, a retomada dos serviços de água e esgoto pelos municípios em diversos países não seria uma tendência, mas episódios causados por problemas específicos de cada caso.

4) Marco regulatório

Outra razão que explica o enorme déficit do saneamento no Brasil é o ordenamento jurídico que rege o setor – e que é hoje objeto de 10 projetos de lei que tramitam no Congresso.
Exemplo: são 49 agências reguladoras diferentes, muitas vezes sem independência dos poderes locais e sem competência técnica para editar normas que balizem o cálculos para revisão das tarifas ou estabeleçam a qualidade mínima dos serviços.
“Já visitei agência reguladora em que a pessoa encarregada da revisão tarifária tinha formação em pedagogia”, destaca Ilana, da CNI.
Outro ponto problemático apresentado por especialistas no setor é a figura do contrato de programa: aquele que pode ser renovado automaticamente e sem necessidade de licitação.
Considerado um instrumento importante para o setor da saúde, para que não haja interrupção da prestação de serviços fundamentais após o fim de um contrato e a negociação de outro, no saneamento ele às vezes pode se tornar um empecilho para a melhoria dos serviços ou mesmo para expansão da rede.
Isso porque, entre suas características, o contrato de programa muitas vezes não traz previsão de investimento (que obrigue as empresas a realizar obras de expansão, por exemplo) nem detalha formas de avaliação de desempenho.
Desde o ano passado, duas medidas provisórias que discutiam o marco regulatório do saneamento foram enviadas ao Congresso, a 844 e a 868.
Esta última perdeu a validade no início de junho e foi recuperada no Senado com o Projeto de Lei 3.261.
A proposta, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), foi aprovada na Casa, mas com mudanças que descaracterizaram bastante a proposta inicial.
A nova versão passou a permitir, por exemplo, que licitações “desertas” abrissem a possibilidade para que municípios contratassem sem licitação; tirou da Agência Nacional de Águas (ANA) a competência de editar “normas de referência” para o setor (devolvendo essa prerrogativa às 49 agências municipais e estaduais) e manteve a possibilidade irrestrita de assinatura de contratos de programa.

‘Lobby forte’ das estatais

Em resposta, a Casa Civil enviou neste mês de agosto um novo Projeto de Lei, o PL 4.162/2019, que, junto com o projeto que veio do Senado, foi apensado às demais propostas e passará a ser analisado por uma Comissão Especial a partir desta semana.
Daqui para frente, a Câmara pode escolher um dos projetos ou fazer uma nova versão reunindo trechos de diferentes propostas.
O relator da proposta na Comissão Especial, Geninho Zuliani (DEM-SP) disse à BBC News Brasil que seu parecer tomará como base a proposta original do senador Tasso Jereissati – e não a versão “desconfigurada” pelas emendas durante a votação da matéria.
Ele reconhece que as estatais têm feito “lobby forte”, inclusive por intermédio de parlamentares na Casa, para a manutenção dos contratos de programas, mas diz que vai tentar encontrar um meio termo.
Nesse sentido, ele estuda três opções: transformar todos os contratos de programa em concessões; preservar os existentes, mas sem prossibilidade de prorrogação após o fim da vigência ou manter a figura desses contratos, mas com a exigência do estabelecimento de planos de metas e de investimentos.
Especialistas do setor como Ilana Ferreira esperam que a retomada das discussões ajude a tornar a questão do saneamento menos invisível e mais presente entre as demandas dos brasileiros.
“Eu sempre me perguntei porque o saneamento não está nos cartazes nas manifestações que pedem mais Educação, mais Saúde”, ela diz.
“Quem sofre com a falta sabe do grande impacto social que o saneamento tem. Qem vive próximo ao esgoto a céu aberto sabe porque o filho fica doente e tem que faltar a aula, sabe porque os bebês nascem prematuros.”
Fonte: BBC

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Plástico na Faixa de Gaza: bênção e maldição ao mesmo tempo.

O pequeno enclave costeiro de Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo. Governados pelo grupo extremista Hamas e isolados por um bloqueio liderado por Israel, hoje, os habitantes estão vendo seus recursos se esgotarem.Aqui, o foco não é a proibição do uso de canudos de plástico, mas sim como sobreviver com eles.

As Nações Unidas preveem que Gaza se torne “inabitável” até 2020, em parte porque 97% da água consumida não é potável. A escassez de energia elétrica e os danos causados pelas guerras se traduzem na falta de tratamento de esgoto, então, água suja deságua no mar. Consequentemente, resíduos perigosos estão por toda parte, de aterros, onde os plásticos podem existir para sempre, ao mar, onde os pescadores só podem pescar a alguns quilômetros da praia devido às restrições israelenses.
E, apesar do terrível estado, os recicladores de plástico de Gaza estão na vanguarda dos esforços que visam evitar um colapso econômico, humanitário e ambiental. Nos últimos anos, uma nova cultura e economia surgiram em torno da reciclagem de plásticos: da coleta e limpeza à triagem e reaproveitamento, as pessoas criaram oportunidades de negócios extremamente necessárias.“As pessoas reutilizam tudo porque elas não têm nada”, diz Ahmed Hilles, diretor do Instituto Nacional do Meio Ambiente e Desenvolvimento da Cidade de Gaza. “O cerco [de Israel] e o fechamento da fronteira aqui em Gaza impulsionam o aumento da reciclagem”.
Ao mesmo tempo, anos de bombardeios e negligência criaram rachaduras nos aterros sanitários. Essas rachaduras permitem que substâncias tóxicas provenientes da decomposição de plásticos cheguem até as águas subterrâneas. Sob o bloqueio dos vizinhos Israel e Egito desde 2007, os plásticos de Gaza, assim como o seu povo, não têm muitas opções.
“Não há bons laboratórios para analisar ou diagnosticar quais plásticos e produtos químicos estão sendo usados”, diz Hilles. “A ausência de um governo de verdade em Gaza torna nossos problemas cada vez mais complicados”.

Os catadores

O governo do Hamas — altamente impopular em Gaza por sua repressão, altos impostos e corrupção — supervisiona os sistemas públicos de gestão de resíduos. Mas quem realmente impulsiona o movimento de reciclagem são as pessoas, as famílias e as vizinhanças que se organizam com um carrinho e um jumento para coletar plásticos de casas, ruas, lixeiras de praia e lixões.
Os itens que eles coletam são vendidos a fábricas ou centros de coleta que, por sua vez, lavam e separam os plásticos. Às vezes, eles moem os plásticos e vendem para fábricas também.
O plástico representa cerca de 16% dos resíduos sólidos em Gaza, de acordo com Hilles, sendo que grande parte é coletada. Um quilograma de plástico é vendido por cerca de um shekel israelense, ou 30 centavos de dólar. O preço sobe de acordo com a qualidade e o tipo de plástico, itens de alta densidade estão entre os mais valiosos.
Nafez Abo Jamee, 49 anos, administra um dos maiores centros de coleta de plástico em Khan Younis, no sul de Gaza. Ele entrou para o ramo quando sua empresa de infraestrutura fechou em 2007. As fronteiras se fecharam e ele de repente se viu com grandes veículos, perfeitos para transportar lixo.
Israel bombardeou o centro de coleta original de Abo Jamee durante um conflito entre Israel e Gaza, em 2014, e ele ainda aguarda ser indenizado pelo governo do Hamas pelos danos sofridos, conta Jamee. Hoje, quando o calor do verão castiga a região, ele conta com apenas um toldo para proteger parte de sua empresa, que não para de crescer.
No entanto, Hilles enxerga algo extraordinário aqui.
“Eles são os agentes e trabalhadores ecológicos mais importantes”, diz ele orgulhoso da equipe suada e empoeirada, que veste roupas esfarrapadas. Eles começam logo de manhã, separando grandes pilhas de plásticos por tipo e cor, e removendo itens indesejados como borracha.
“Eles são muito experientes”, conta ele com entusiasmo. “Especialistas no ramo”.
A equipe de Abo Jamee realmente enxerga algo novo em cada item — futuras cadeiras e mesas de plástico, bicicletas infantis, tapetes coloridos, cerdas para vassouras e aditivos para tornar outros plásticos mais flexíveis, entre dezenas de possibilidades.
Ainda assim, os dois homens temem que a poluição plástica e os resíduos tóxicos estejam sendo introduzidos no ciclo de nutrição de Gaza e afetando as pessoas e a terra. Garrafas de vidro, garrafas plásticas e outros itens com plástico BPA, por exemplo, não podem ser reciclados e transformados em nenhum outro produto que entre em contato com alimentos ou bebidas. Mas Hilles disse que os funcionários do governo que fiscalizam fábricas de plástico geralmente não possuem recursos, habilidades ou interesse para inspecionar e garantir que as regras locais baseadas nos padrões internacionais sejam cumpridas. Agricultores que sofrem com o estresse hídrico, por exemplo, usam água contaminada pela erosão de aterros sanitários para irrigar suas terras, expondo quase tudo e todos ao longo do caminho.
O aumento da reciclagem em Gaza deve-se em parte a campanhas de conscientização feitas por locais como o centro de Hilles. Em um vídeo para a TV local, Hilles mergulhou na poluída costa mediterrânea de Gaza para ensinar às pessoas sobre o lixo plástico na água e os perigos de comer peixe que consome plástico.
Ainda assim, existe pouca supervisão. Há poucos estudos sobre os impactos que a produção e o consumo de plástico em Gaza geram na saúde e no meio ambiente.
“Se o plástico for produzido e usado corretamente, os impactos na saúde serão limitados”, diz Khaled Tibi, 47 anos, chefe de Estudos Ambientais do Ministério da Saúde de Gaza. “O problema é o uso indevido do plástico”. Ele continuou: “As regulamentações que temos são limitadas. As possibilidades que temos são limitadas. Não há especialistas capazes de realizar estudos específicos”.

O produtor

A movimentada fábrica de plásticos Ramlawi, em uma zona industrial em ruínas a leste da cidade de Gaza, é uma história de sucesso local.
“Todos os dias recebo mais e mais materiais [reciclados]”, diz Khalil Ramlawi, 30 anos, que administra a fábrica de sua família, atualmente a maior dentre cerca de uma dúzia de estabelecimentos envolvidos com plásticos. “Hoje há mais informações sobre reciclagem e, para as pessoas, a cultura sobre o plástico mudou. Nasceu uma cultura na qual eu posso vender o plástico e me beneficiar com isso”.
A família Ramlawi fundou a fábrica em 1986, quando as fronteiras estavam abertas, e começaram a lucrar fabricando sacolas, recipientes de armazenamento, canos e garrafas de polietileno (o tipo mais onipresente e um dos mais seguros) importado de Israel.
Então, em 2007, o Hamas, considerado pelos EUA um grupo terrorista, assumiu o controle do minúsculo território costeiro, antes detido pela Autoridade Palestina liderada pelo Fatah, seu rival apoiado pelo Ocidente. Os vizinhos Israel e Egito impuseram um bloqueio terrestre e marítimo para tentar expulsar o Hamas. Israel e o Hamas lutaram três guerras em 10 anos, com incontáveis mortes sangrentas nesse período.
Agora, 12 anos depois, com eletricidade e recursos limitados, a fábrica de Ramlawi é menor e a maior parte do plástico é coletada dentro da Faixa de Gaza. A fábrica ainda importa de Israel sacas de polipropileno e grânulos de polietileno de baixa densidade para a fabricação de nylon e sacos de lixo. Às vezes, porém, as importações são interrompidas. O polietileno aparece na lista de Israel como item de “aplicação dupla” passível de proibição, o que significa que ele é classificado como tendo propósitos tanto civis quanto militares.
Além dos materiais importados, a fábrica transforma itens de plástico comprados de catadores em sacos de lixo, sacos utilizados em estufas, tubos de irrigação e outros itens, dependendo da necessidade.
Quando as importações de Israel estão estáveis, cerca de 10% dos produtos de plástico em Gaza são provenientes de itens reciclados localmente e 90% de grânulos de polietileno prontos para uso, produzidos em Israel e em outros países como Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos, segundo Sami Nafar, chefe da Federação de Plásticos de Gaza.
Ramlawi assiste a vídeos no YouTube sobre reciclagem de plástico em outros países. Ele está interessado em novas tecnologias para criar alternativas, como sacolas plásticas solúveis — exceto pelo fato de que Gaza está muito longe disso. Ele quer ir para o exterior para estudar mais o setor, mas isso exige um visto e uma passagem pela fronteira, que são difíceis de obter.

Os efeitos do plástico

Tibi, do Ministério da Saúde, não tem dúvidas de que o trabalho de pessoas como Wissam Adel, de 15 anos, — que passa seus dias vasculhando montes de lixo em um aterro malcheiroso — seja nocivo à saúde em longo prazo.
Adel abandonou a escola para trabalhar como catador de plástico com seus irmãos. Apenas respirar no local onde ele passa o dia faz seus pulmões doerem. Adel usa roupas esfarrapadas, sandálias de plástico gastas e todos os dias caminha cerca de uma hora de sua casa, em um bairro densamente povoado da Cidade de Gaza, até o aterro de Juhor al-Deek. Ele tem sorte se consegue ganhar 15 shekels (US$ 4) por dia. Ele e seus colegas ficam à espera de um caminhão da ONU para atacarem o lixo recém-despejado. Ao fundo, guindastes do outro lado da fronteira, em Israel.
“Queremos viver”, explica Adel, em referência aos gritos de protesto dos moradores pobres da Faixa de Gaza contra as restrições do Hamas e de Israel. Ele não consegue encontrar outro trabalho. Uma névoa sobe do lixo em decomposição, onde cães e seus filhotes brincam.
Isso, para Hilles, faz parte do motivo pelo qual a reciclagem de plástico precisa ser levada mais a sério em Gaza.
“Nós somos responsáveis pelo nosso planeta”, diz ele. “O meio ambiente não é um presente de nossas avós. Deve ser preservado para as futuras gerações. Nós em Gaza fazemos parte desse mundo”.
Fonte: National Geographic

Microplásticos na água representam ‘risco pequeno à saúde’, diz estudo.

Microplásticos na água potável não parecem representar um risco para a saúde nos níveis comumente encontrados atualmente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em seu primeiro relatório sobre a questão, a OMS descobriu que partículas maiores e a maioria das menores passam pelo corpo sem serem absorvidas.
Mas disse que as descobertas foram baseadas em “informações limitadas”, e exigiu mais pesquisas sobre o assunto.
“Precisamos urgentemente saber mais sobre o assunto”, disse o órgão da ONU.
Bruce Gordon, da OMS, comprometeu-se iniciar pesquisas mais amplas durante entrevista à BBC News em 2018, depois que a Orb Media encontrou partículas de plástico em muitas das principais marcas de água mineral engarrafada.

O que diz o relatório?

Os microplásticos, definidos como pequenos pedaços (menos de 5 mm de comprimento) de qualquer tipo de detrito plástico, foram encontrados em rios, lagos, fontes de água potável e em garrafas de água.

Então, o que isso significa para a saúde humana?

Em seu primeiro relatório sobre a questão, a OMS afirma que os microplásticos não parecem representar um risco para a saúde nos níveis atuais, mas acrescenta que muito mais pesquisas são necessárias.
Estudos apropriados sobre plásticos na água só começaram a realmente ser feitos nos últimos dois anos.
Além disso, os estudos realizados não foram padronizados, com diferentes pesquisadores utilizando diferentes filtros para avaliar o número de partículas de plástico presentes em diferentes fontes de água.
“Para dizer que uma fonte de água tem mil micropartículas por litro e outro tem apenas um, poderia simplesmente depender do tamanho do filtro utilizado”, explicou Gordon.
“Estamos basicamente em um ponto em que os métodos de estudo eram bastante fracos.”
No entanto, Gordon diz que a pesquisa disponível deve ser “bastante reconfortante” para os consumidores humanos.
A OMS afirma que as evidências sugerem que todas as partículas maiores de plástico, e a maioria das menores, simplesmente passam pelo corpo sem serem absorvidas.

O que poderia ser feito?

Um tratamento apropriado das águas residuais, incluindo a remoção de conteúdo fecal e produtos químicos deve, segundo a OMS, também remover mais de 90% dos microplásticos.
É por isso que as recomendações da OMS, na esteira deste relatório, não incluem verificações de rotina para microplásticos na água.
Em vez disso, a OMS quer que fornecedores e reguladores de água potável se concentrem em “riscos conhecidos”.
“Dois bilhões de pessoas bebem água contaminada”, disse Gordon. “E isso causa um milhão de mortes por ano. Esse tem de ser o foco.”
No entanto, a OMS considera a poluição por plástico um problema urgente. Aconselha reduzir o uso de plásticos sempre que possível e melhorar os programas de reciclagem.

Quão limitada é a pesquisa?

A principal mensagem deste relatório inicial é realmente o quanto não sabemos sobre as consequências da poluição plástica.
Alguns estudos indicam que a água engarrafada contém mais microplásticos que a água da torneira, mas não está claro o motivo. Pode ser uma fonte de água contaminada, mas também podem ser causado pelos polímeros plásticos usados ​​para fazer as garrafas e tampas.
E embora as evidências disponíveis sugiram que os riscos à saúde associados à ingestão de microplásticos e os produtos químicos associados a eles sejam mínimos, os estudos até agora contêm lacunas de dados significativas, que precisam ser corrigidas em pesquisas futuras, de acordo com a coautora do relatório Jennifer de France.
“Precisamos saber o número de partículas que foram detectadas, o tamanho dessas partículas, as formas, bem como sua composição química”, diz ela.
Portanto, este relatório sobre as consequências dos microplásticos para a saúde provavelmente será o primeiro de muitos. Isso porque os microplásticos estão presentes não apenas na água, mas também no ar e em nossos alimentos.
Nos próximos anos, a OMS deseja fazer um estudo analisando o que essa “exposição ambiental total” significa para nossa saúde também.
Fonte: BBC