terça-feira, 27 de agosto de 2019

Amazônia levará séculos para se recuperar das queimadas, afirma bióloga.

Em meio à comoção nacional e internacional com os incêndios de grandes proporções que se alastraram pelo norte do Brasil, a Amazônia segue ardendo. Autoridades demoram a agir para conter as chamas e, enquanto isso, o maior patrimônio natural dos brasileiros vai sofrendo perdas irreparáveis. Mesmo quando sobrevive ao fogo, a Floresta Amazônica não volta a ser o que era. Cientistas ainda não sabem quanto tempo ela demora para se regenerar.

Estudos recentes apontam que a recuperação pode levar centenas de anos. Após queimar, a maior floresta tropical do planeta até continua em pé, mas não sem pagar um alto custo. Metade das árvores não resiste às labaredas — 50% de mortalidade é considerada uma taxa muito alta. Árvores gigantes acabam morrendo e cedem lugar a plantas mais novas, menores e de tronco bem mais fino. Com isso, a capacidade de armazenar carbono fica comprometida.
É inimaginável o tanto de CO2 que a floresta armazena. “Se pegar todos os nove países da Amazônia, não só o Brasil, a quantidade de dióxido de carbono é equivalente a 100 anos de emissões de combustíveis fósseis dos Estados Unidos”, afirma a bióloga Erika Berenguer em entrevista à GALILEU. “Assim que a área é desmatada e queimada, todo o carbono que estava nos troncos vai direto para a atmosfera, contribuindo para as mudanças climáticas.”
A pesquisadora das universidades de Oxford e de Lancaster, no Reino Unido, é especialista em degradação de florestas tropicais pela ação humana. No mesmo em dia em que conversou por telefone com a reportagem diretamente de Madagascar, onde passava férias, Berenguer postou em seu perfil no Facebook um texto explicativo com respaldo científico para divulgar as informações essenciais sobre o que está acontecendo na Amazônia.
A postagem viralizou e já reúne mais de 54 mil compartilhamentos e 10 mil comentários. “Há 12 anos eu trabalho na Amazônia e há 10 pesquiso sobre os impactos do fogo na maior floresta tropical do mundo”, escreve a pesquisadora. “Já vi a floresta queimando sob os meus pés mais vezes do que gostaria de lembrar. Me sinto, então, na obrigação de trazer alguns esclarecimentos, enquanto cientista e enquanto brasileira.”
Nada natural
O intuito da pesquisadora com a sua publicação no Facebook era tornar a realidade amazônica um pouco menos distante para a maioria dos brasileiros, que vive em grandes centros urbanos. A biologia evolutiva traz o fato mais crucial — a Floresta Amazônica não está acostumada com o fogo. Ao contrário de outros biomas do Brasil e do mundo, como o Cerrado ou as vegetações nativas da Califórnia e da Austrália, ela não evoluiu submetida a incêndios florestais intensos e recorrentes.
Como a umidade relativa do ar na bacia amazônica varia entre 77% e 88%, o fogo sempre apagou rápido. Não durava muito nem causava grande estrago. Por isso, as árvores não criaram mecanismos de proteção eficientes que as protegessem das labaredas, como as cascas grossas do Cerrado. Na Amazônia, troncos finos não protegem os vasos condutores dos vegetais durante as queimadas, e é essa a causa da alta mortandade de árvores.
Pesquisas de Berenguer e colegas mostram que a metade da floresta que sobrevive ao fogo armazena 40% menos carbono que quando era intocada. Mesmo 30 anos depois, os efeitos ainda são sentidos: a quantidade de carbono armazenada é 25% menor do que a de uma mata que nunca queimou. Estações mais secas como a de 2015 e 2016, causadas pelo fenômeno El Niño, agravam as queimadas. Mas, ainda assim, elas não são naturais.
Não na Amazônia. “Não faz parte da dinâmica. Esse fogo é iniciado pelo ser humano, alguém precisa colocar fogo”, afirma Berenguer. Conforme denunciou uma reportagem da revista Globo Rural no último domingo (25), um grupo de WhatsApp que reunia pelo menos 70 pessoas, entre eles produtores rurais e grileiros, organizou o “Dia do Fogo” no Pará. O Ministério Público e a Polícia Civil de Novo Progresso (PA) investigam o crime ambiental.
Dados do Inpe sobre o desmatamento da Amazônia apontam um aumento de 278% em julho comparado com o mesmo mês do ano passado. Não é coincidência que as queimadas tenham aumentado junto com a derrubada das árvores: elas representam o último estágio antes de uma área que há pouco tempo abrigava vegetação exuberante virar pasto. Há um roteiro que grileiros e latifundiários seguem ao perpetrar seus crimes contra a floresta.
Dia do fogo
Como explica Berenguer, primeiro esses grupos chamam madeireiros para que derrubem e retirem apenas as toras de valor econômico, como o ipê. Depois dão uma verdadeira rasteira no que sobrou da mata por meio do processo apelidado de correntão. “Dois tratores interligados por uma corrente imensa caminham lado a lado e vão levando ao chão tudo que veem pela frente”, conta a pesquisadora.
É preciso deixar os restos e tocos da floresta curtindo ao sol da estação seca por alguns meses até que estejam secos o bastante para queimar. Aí é só organizar a ação com outros madeireiros e o Dia do Fogo toma conta do resto. “Toda a vegetação é destruída, vira cinzas, e com isso dá para plantar capim na área derrubada”, diz a bióloga. E, assim, nosso maior patrimônio é destruído em nome da produção e do consumo de bifes.
O problema é que, muitas vezes, o fogo não para na região afetada pelo desmatamento. Beiras de estrada e clareiras abertas na mata por madeireiros fazem sol e vento penetrarem na floresta — elas ficam mais secas e suscetíveis a queimar. As próprias mudanças climáticas, tão agravadas pelas queimadas na Amazônia, já estão fazendo sua parte: secas mais severas e prolongadas colocam a floresta em risco crescente.
O jeito como o fogo “invasor” consome a Amazônia é muito diferente do que estamos acostumados. Ele não transforma as árvores em grandes tochas nem alcança suas copas: permanece a poucos palmos do chão. Bem baixo, coisa de meio metro de altura, no máximo. Por isso, não é tão difícil contê-lo. Grandes aviões-tanque como o contratado pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, ajudam. Mas não são a técnica mais eficaz.
Por incrível que pareça, a própria floresta oferece a solução. Basta varrer as folhas secas em volta da queimada para que o solo contenha o alastramento. É o processo chamado de aceiro. Estudo recente mostrou que até mesmo trilhas estreitas de formigas cortadeiras são capazes de parar o fogo. Mas o trabalho é cansativo, desgastante, além de muito custoso — e boa parte das operações eram financiadas com recursos do extinto Fundo Amazônia.
Em seu texto nas redes sociais, Berenguer tenta descrever sua dor indescritível sempre que testemunha a Floresta Amazônica, lar da maior biodiversidade do planeta, destruída pelo fogo. Para ela, são cenas traumáticas. “É catastrófico, o cheiro de churrasco e o silêncio profundo não vão sair da minha cabeça jamais”, ela diz.
“A floresta, antes de um verde luxuriante, fica cinza e, de repente, tudo fica silencioso, estranhoa frase””Erika Berenguer, bióloga
“A floresta, antes de um verde luxuriante, fica cinza e, de repente, tudo fica silencioso, estranho. A Amazônia é barulhenta pra caramba, uma cacofonia, mas vira um silêncio mortal. É aterrorizante.” Mais parece um pesadelo, que de tão real, já está trazendo trevas e obscurecendo a luz do dia na maior cidade da América do Sul.
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