quinta-feira, 29 de março de 2018

Governo excluiu aos ‘45 do 2º tempo’ áreas mais vulneráveis de reservas marinhas, dizem pesquisadores

As reservas – que juntas somam 92 milhões de hectares, o equivalente aos Estados de Minas Gerais e Goiás somados – fizeram com que o índice de águas marinhas brasileiras com algum grau de proteção passasse de 1,5% a 25%.
A criação das duas unidades nos arredores das ilhas brasileiras mais afastadas do continente era uma demanda antiga de ambientalistas e foi classificada como histórica pelo governo.
A configuração final das reservas, porém, foi um balde de água fria para pesquisadores que acompanharam as negociações e ajudaram a elaborar as propostas para a proteção das áreas. Eles afirmaram à BBC Brasil que mudanças nos planos originais feitas “aos 45 do segundo tempo” comprometeram a proteção de vários trechos cruciais para o equilíbrio ecológico das regiões.
Segundo os pesquisadores, a Marinha pressionou o governo a mudar as propostas para poder manter atividades pesqueiras nos dois arquipélagos – argumento rejeitado pela instituição militar, que diz ter buscado conciliar a preservação ambiental aos interesses de defesa nacional.
Image captionMapa mostra as duas maiores reservas marinhas do país, criadas nos arquipélagos de Trindade e Martin Vaz e São Pedro e São Paulo | Imagem: Governo Federal
“O governo deixou de fora boa parte dos ambientes mais ricos em vida marinha e mais sujeitos a ameaças, que eram justamente os espaços que mais precisavam de proteção”, diz à BBC Brasil o biólogo paraibano Luiz Rocha, pesquisador na Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados Unidos.
Rocha se refere às águas rasas em torno dos arquipélagos, onde há maior concentração de recifes. No caso de Trindade, ele diz que essas áreas abrigam 80% das espécies marinhas encontradas na região.
Trindade fica em um dos extremos de uma cordilheira com 1,2 mil km iniciada na costa da capital capixaba, Vitória, e composta por cerca de 30 montes submarinos. A formação abriga 270 espécies de peixes recifais – dos quais 24 ameaçados de extinção –, maior índice de diversidade entre todas as ilhas brasileiras e um dos maiores do Atlântico.
Em São Pedro e São Paulo, menor e mais isolado arquipélago tropical do mundo, foram registradas 213 espécies, das quais 19 correm risco de extinção e uma já foi extinta.
A riqueza natural das águas costeiras faz com que sejam especialmente cobiçadas pela pesca, considerada uma das principais ameaças aos dois arquipélagos.
Nas propostas elaboradas pelos pesquisadores e submetidas pelo Ministério do Meio Ambiente a consultas públicas, todas as águas costeiras dos dois arquipélagos ganhariam o status de Monumento Natural (Mona), que confere proteção integral e proíbe qualquer atividade econômica.
As propostas previam ainda que amplas zonas em torno desses trechos ganhariam o status de Área de Proteção Ambiental (APA), categoria menos restritiva, onde atividades econômicas como a pesca e a mineração podem ser autorizadas desde que estejam previstas no plano de manejo das unidades e não causem grandes impactos.
Image captionÁreas mais ricas em espécies marinhas, como as que estão em torno da ilha de Trindade (na foto), foram deixadas de fora pelo governo | Foto: João Luiz Gasparini/Divulgação
O desenho final das unidades, porém, deixou a maior parte das águas costeiras sem qualquer status de proteção. No caso de São Pedro e São Paulo, uma pequena porção das águas costeiras ao sul do arquipélago se tornou Monumento Natural. No de Trindade, foram contempladas a costa ocidental da ilha e uma praia pequena no leste.
Nos dois arquipélagos, os maiores trechos que receberam proteção integral – e que, somados, equivalem a dois Estados da Paraíba – ficam em áreas de mar aberto, assim como os trechos que se tornaram Áreas de Proteção Ambiental, que ocupam a maior parte das unidades.
As águas de mar aberto, segundo o biólogo Luiz Rocha, têm concentração e variedade muito menor de animais. Em artigo publicado no jornal americano The New York Times na terça-feira, ele criticou vários governos – entre os quais o do Brasil – por criar grandes reservas em mar aberto em vez de enfocar zonas costeiras.
“Embora as vastas áreas de oceano sejam importantes, sua proteção não deveria ocorrer antes que as águas costeiras estejam seguras”, escreveu.
Autor do plano de criação da reserva em Trindade e Martim Vaz, o biólogo capixaba Hudson Pinheiro, também pesquisador na Academia de Ciências da Califórnia, diz que a proposta “levou vários anos para ser construída e não sofreu nenhuma contestação no período de consultas públicas, algo raríssimo, até ser alterada na véspera do decreto”.
A consulta pública é uma das últimas etapas no processo de criação de unidades de conservação, quando a proposta é submetida à sociedade e críticos podem se manifestar.
Pinheiro diz que a mudança nos planos “foi uma decisão política tomada de cima para baixo, que não levou em conta os critérios científicos que embasavam a proposta”.
“Fico muito triste, porque isso mostra que o meio ambiente não é uma prioridade para o governo”, afirma.
Para o pesquisador Carlos Eduardo Leite Ferreira, coautor da proposta de criação da reserva no arquipélago de São Pedro e São Paulo, além de abrigarem menor diversidade, as áreas que ganharam proteção integral são muito mais difíceis de fiscalizar.
Image captionA riqueza natural das águas costeiras faz com que sejam especialmente cobiçadas pela pesca | Foto: João Luiz Gasparini/Divulgação
Interesses pesqueiros
Os pesquisadores Hudson Pinheiro e Luiz Rocha dizem que a Marinha pressionou o governo a mudar as propostas para poder manter atividades pesqueiras nos dois arquipélagos.
Em Trindade, onde a Marinha mantém uma base, militares pescam há vários anos como atividade de lazer. Recentemente, além da pesca por linha e anzol, passaram a realizar caça submarina.
No estudo que amparou a proposta de criação da reserva, Pinheiro diz que a prática deixou de ser apenas recreativa e passou a causar grande impacto no equilíbrio ecológico da região. Ele diz que cada marinheiro é autorizado a transportar uma cota de peixes ao regressar da ilha, que varia de 15 kg a 100 kg de peixe limpo por militar.
Pinheiro estima que militares pesquem 2,5 toneladas de bodiões (peixes papagaio) e 2,2 toneladas de garoupa na ilha por ano, níveis “comparáveis ao da pesca comercial”. Ele afirma que entre os peixes capturados pelos marinheiros há “espécies ameaçadas de extinção, espécies raras e espécies restritas à ilha de Trindade, como a garoupa gato e o sargo de beiço”.
A Marinha disse que “é inverídica a informação de que os militares estejam autorizados a levar 100 kg de peixe limpo da ilha de Trindade”, mas não informou qual a cota permitida.
O decreto de criação das reservas garante a manutenção da “pesca de subsistência” e da “pesca econômica na Área de Proteção Ambiental da Ilha de Trindade, quando autorizada, desde que não sejam utilizados métodos predatórios”.

Image captionCadeia de montes submarinos entre Vitória e a ilha de Trindade guarda ‘floresta tropical no fundo do mar’ | Imagem: Museu Nacional – UFRJ
Pesca comercial
No arquipélago de São Pedro e São Paulo, a Marinha não está diretamente envolvida com a atividade pesqueira, mas mantém um contrato com uma empresa de pesca comercial baseada em Natal.
Em 2017, segundo o Portal da Transparência, a Marinha repassou R$ 1,3 milhão à companhia Transmar – Captura, Indústria e Comércio de Pescados Ltda. como pagamento pelo transporte de pesquisadores que atuam em uma estação cientítica em São Pedro e São Paulo.
A Marinha custeia o transporte dos cientistas por uma questão de soberania nacional: ao garantir que a ilha esteja permanentemente ocupada por civis, o Brasil pode incorporá-la a sua Zona Econômica Exclusiva, conforme a Convenção da ONU sobre os Direitos do Mar.
A estação permite a permanência de quatro pesquisadores, substituídos a cada 15 dias, segundo as diretrizes do programa Proarquipélago. O barco que transporta os cientistas é autorizado a pescar nas águas costeiras.
Segundo o estudo que amparou a proposta de criação da reserva, a pesca comercial ocorrida em São Pedro e São Paulo nas últimas décadas já levou uma espécie à extinção: o tubarão-de-galápagos, cujas nadadeiras eram exportadas para a Ásia para virar sopa.
A Marinha disse em nota à BBC Brasil que sua relação com a empresa pesqueira não afetou a posição do órgão sobre a criação da reserva.
A força diz ter solicitado que parte do arquipélago ficasse fora da área de proteção integral “para garantir a imprescindível permanência de pesquisadores na estação de pesquisa e as atividades relacionadas ao Proarquipélago”.
O órgão diz que os traçados das unidades “resultam de um acordo entre o Ministério do Meio Ambiente e a Marinha do Brasil com o propósito de conciliação da preservação de soberania e defesa nacional e da biodiversidade”.
A Marinha disse que suas atividades seriam limitadas caso todas as águas que circundam os dois arquipélagos ganhassem proteção integral.
Pesquisadores criticaram mudanças em medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer nesta semana
A posição é contestada pelo ICMBio, órgão do governo responsável pela gestão de unidades de conservação.
Coordenador geral de Criação, Planejamento e Avaliação de Unidades de Conservação do ICMBio, Ricardo Brochado diz à BBC Brasil que o órgão tentou convencer a Marinha de que a proteção integral não conflitaria com as atividades de defesa nacional, mas que a força não cedeu e fez prevalecer sua posição.
Ele diz ainda que o ICMBio propôs à Marinha assumir o apoio logístico a pesquisadores em São Pedro e São Paulo. O assunto está sendo tratado pelos dois órgãos, segundo Brochado.
O secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa, diz respeitar as críticas dos pesquisadores, mas afirma que a criação das reservas “foi um passo extraordinário nunca dado anteriormente”.
Costa diz que compreender as queixas dos cientistas sobre as mudança nas propostas. “Eles têm um conhecimento detalhado dessas áreas, estiveram lá e viram coisas preciosíssimas.”
Mas afirma que os pesquisadores “erram ao partir da premissa de que a Marinha é predadora”.
“O ICMBio não tem condições de tomar conta dessas áreas sozinho. Há ações que podem e precisam ser melhoradas, mas a Marinha está mais do que aberta a tratar dessas questões.”
Fonte: BBC

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