Florestas refletem cultura, economia e sociedade da Alemanha.
O local de trabalho de Erik Aschenbrand está permeado pelo mito das florestas como poucos na Alemanha. O Parque Natural Reinhardswald, que ele dirige, é um dos pontos centrais da Deutsche Märchenstrasse, a Rota Alemã de Contos de Fadas, cujos 600 quilômetros de extensão convidam a visitar muitos dos locais lendariamente habitados por princesas, duendes, famílias de ursos e gnomos.
Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm compilaram muitos de seus contos em volta dos bosques supervisionados por Aschenbrand. Entre eles, o da Bela Adormecida – a qual teria dormido por cem anos em Sababurg, bem nas proximidades, rodeada por espinheiros, até um valente príncipe despertá-la com um beijo. Ou o de Rapunzel, que, para deixar entrar seu salvador, lançava sua longuíssima cabeleira dourada do alto da torre onde estava presa.
Conheça os encantos da Floresta Negra
As antigas narrativas que os irmãos Grimm registraram lhes foram transmitidas oralmente, seu conteúdo de verdade é secundário, importante são as histórias e o ato de narrar. E a por vezes tenebrosa mata representa um papel decisivo nesses contos tradicionais.
Aschenbrand cita como exemplo Joãozinho e Maria: “Eles são enviados para a floresta. Lá se oculta o mal, na forma da bruxa má. Mas ambos vencem esse perigo e conseguem sair felizes da floresta.”
O arvoredo escuro é o espaço selvagem, perigoso, em que se confrontam os desafios. Quão “malvada” seja essa floresta depende muito da perspectiva do observador: para quem vive nela e dela, ela não é obscura – para os de fora, possivelmente.
“A Floresta Negra não tem esse nome por lançar sombras escuras”, explica Uwe Schmidt, professor de História das Florestas Naturais e Comerciais da Universidade de Freiburg. “Quando se olham as pinturas da Idade Média, a hostilidade em relação às florestas salta aos olhos. Elas nem são pintadas, de tão ‘negras’ que são – ou seja, incivilizadas e refratárias à colonização. Em vez disso, os fundos das pinturas medievais são dourados, a cor da pureza e da atemporalidade.”
Ao contrário das cidades modernas, em que áreas verdes e as árvores são tão apreciadas pelos moradores, nos assentamentos da Idade Média a natureza não era bem-vinda, com exceção das tílias. Na Freiburg medieval não havia praticamente nenhuma árvore, embora a cidade fique praticamente no meio da Floresta Negra, observa Schmidt.
As árvores só eram boas como recurso material, como fonte aparentemente inesgotável de madeira, e eram exploradas radicalmente. Contudo, o mais tardar na época barroca, fica claro que isso não é sustentável.
Ascensão, exploração, reflexão
Do fim do século 16 ao 18, as cidades cresciam, o comércio florescia, palácios e castelos ficavam cada vez maiores e mais suntuosos. Sobretudo os comerciantes e artesãos procuravam multiplicar sua fortuna, e a floresta se transformou em principal fonte de energia.
No século 18 eram cortados até 10 milhões de metros cúbicos de madeira por ano, para fabricar novos telhados, cascos de navios e para a produção de carvão, o qual garantia o funcionamento das primeiras instalações industriais, conta Schmidt. Pois ainda não havia como utilizar e transportar carvão mineral em larga escala.
Esse esquema não era sustentável, e a cada década as florestas sofriam mais, sobretudo nas proximidades dos centros comerciais e cidades maiores. Paralelamente, elas se transformaram num tema para os artistas românticos.
Impulsionados pelo recém-descoberto amor à natureza, os românticos cantaram o valor da floresta e descobriram para si a gente pobre que sempre vivera nela e com ela. Foi nesse meio que os Irmãos Grimm compilaram seus contos – nem todos de fadas. De Reinhardswald a Spessart, Hamelin ou Bremen, alguns eram um tanto sinistros, meio assustadores, e definitivamente estranhos para os moradores das cidades. Até hoje, até certo ponto continua sendo assim quando cidadãos urbanos descobrem a natureza como local de retiro, comenta Aschenbrand, ou quando se trata de estabelecer reservas naturais: “A gente da cidade tem uma visão da natureza totalmente diversa da de quem vive lá.”
No início da Revolução Industrial, no século 18, como também hoje em dia, os habitantes da cidade procuravam um meio puro e inocente, “queriam ver a floresta como um mundo oposto à cidade deles”.
O especialista em florestas Schmidt fala até mesmo de uma glorificação da floresta. No Romantismo, bosques e árvores foram carregados com simbologia. É também a época em que as feridas na natureza começam a ser fechadas.
“No Romantismo, são plantadas na Alemanha espécies pioneiras de árvores, sobretudo abetos no Sudoeste e carvalhos no Norte.” Essas árvores não transformam apenas a aparência dos arvoredos, mas também o status de tudo o que se relacionava a eles.
No fim do século 19, guarda florestal passa a ser visto cada vez mais como a profissão ideal. Existem até estatísticas de quantos homens queriam adotá-la e quantas mulheres gostariam de se casar com um guarda florestal, revela Schmidt. “A floresta ganha uma ótima reputação, do ponto de vista do grande público.”
Com a ascensão da extrema direita na Alemanha, a natureza é reinstrumentalizada, prossegue o especialista. “No nacional-socialismo, a floresta ganhou uma carga ideológica”, a ligação íntima dos alemães com seus arvoredos foi acentuada.
Supostamente esses laços existiam desde a Batalha de Varo, no século 9º, em que os germanos conseguiram vencer os romanos graças a sua aliada, a Floresta de Teutoburgo. Para os nazistas, as matas e o povo alemão formavam uma unidade. E naturalmente tratava-se também de exclusão: segundo a ideologia, os judeus, como povo das estepes, seriam incapazes de compreender a cultura silvestre alemã, conta Uwe Schmidt.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os alemães voltaram-se para os bosques a fim de esquecer os horrores recentes. “A floresta, a natureza, se regeneraram mais depressa do que as cidades bombardeadas.”
Sob as árvores, era possível abstrair-se da destruição e do desastre, pelo menos por algum tempo. “Esqueceu-se que antes a floresta fora explorada pelos nacional-socialistas para sua ideologia: a floresta tinha seu próprio valor.”
O pânico da waldsterben
E ela permaneceu valiosa nas décadas seguintes. Sua cotação era tão alta na sociedade, que nos anos 1980 houve grande apreensão de que as florestas desapareceriam, ao se descobrirem danos em larga escala nos topos e raízes das árvores: falou-se de waldsterben, a extinção paulatina e em parte inexplicável das matas.
“Quando a síndrome da morte das florestas veio à tona, ela não era discutida e tratada apenas nos meios científicos, mas percebida por todas as camadas da sociedade”, recorda o professor Schmidt. Esboçaram-se “verdadeiros cenários apocalípticos, de como estariam as matas da Alemanha em dois ou três décadas.”
Isso resultou numa consciência ambiental cada vez mais aprofundada, os cidadãos passaram a se dar conta das consequências de sua sociedade de consumo e bem-estar.
E isso “mostra que a floresta é sempre um espelho da sociedade”, resume o pesquisador da Universidade de Freiburg. “A história alemã é um excelente exemplo das funções variadas que a floresta pode ter, e do valor social que possui.”
Fonte: Deutsche Welle
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