terça-feira, 14 de agosto de 2018

O lendário fruto de uma ilha que provocou motim histórico.

Agricultor tem dezenas de espécies de frutas na propriedade, um oásis no meio da cana (Foto: Reprodução / EPTV)
Na Polinésia Francesa, há uma lenda sobre a grande fome que ocorreu na ilha de Raiatea. Uma família de seis pessoas estava tão desesperada por comida que foi morar numa caverna e chegou a comer samambaias silvestres que cresciam no vale ao redor. Sem aguentar mais ver seus entes queridos sofrerem, o patriarca diz à sua esposa que cavaria um túmulo e se enterraria ali. No local, floresceria uma árvore que, então, poderia alimentá-los.
Quando, numa dada manhã, sua esposa acordou e não mais o viu, sabia o que tinha acontecido. Nas proximidades, havia uma árvore-do-pão que crescia rapidamente, com galhos carregados de frutos. Hoje, esse lugar é chamado de Mahina, mas muitos moradores locais ainda se referem a ele como Tua-uru, que significa “vale da fruta-pão”.
Em minha visita à Polinésia Francesa, não precisaria ter ouvido essa história para deduzir que a fruta-pão, ou uru, como dizem os polinésios, faz parte tanto da dieta dos moradores quanto de sua cultura.
Aonde quer que fosse, via as imponentes árvores com suas folhas brilhantes e frutas pesadas, cada uma do tamanho de bolas de beisebol ou até maiores. Elas decoravam as beiras das estradas e os quintais das casas. “Uma coisa comum”, um polinésio nativo chamado Tea me contou, “porque significa que você pode alimentar sua família por muitos anos”.
Nas feiras livres, a fruta-pão circular e oblonga (existem dezenas de variedades apenas na Polinésia Francesa) era exposta ao lado do coco, da banana-da-terra, da graviola e do maracujá, com o exterior verde coberto por minúsculas formas hexagonais. Algumas já haviam sido cortadas ao meio, exibindo uma polpa branca fibrosa. Elas se pareciam com a jaca, embora menores, e fazem parte da mesma família, junto com os figos.
Nas mais de 100 ilhas que formam a Polinésia Francesa, a fruta-pão é um alimento básico. O nome deriva do fato de que, quando está madura o suficiente para ser comida, a fruta se parece ao pão que acaba de sair da fornalha. Ela fica mais doce à medida que amadurece e pode ser preparada de várias maneiras, incluindo amassada, cozida, assada e frita, ou até mesmo consumida crua.
Alguns locais chamam a fruta-pão de ‘Árvore da Vida’, porque tanto o fruto quanto as folhas da árvore são comestíveis. Além disso, a madeira leve de seu tronco pode ser usada para construir casas e canoas tradicionais, e a casca é usada até mesmo para fazer roupas.
A fruta-pão é nativa da Nova Guiné, e o polinésios a cultivam em suas incursões pelo Pacífico Sul há milhares de anos.
Depois que os exploradores britânicos descobriram a planta e sua fruta nutritiva, foi apenas uma questão de tempo até que o uru se espalhasse pelo mundo. Hoje, as árvores de fruta-pão são abundantes em 90 países, em sua maioria tropicais, como o Brasil.
Em 1768, quando o capitão inglês James Cook partiu a bordo do navio HMS Endeavour, da Marinha Real britânica, junto com o botânico Sir Joseph Banks, sua viagem exploratória de três anos incluiu uma parada de três meses no Taiti.
Ali, os dois homens se encantaram pelo potencial da fruta-pão para alimentar escravos nas Índias Ocidentais Britânicas, visto que as árvores cresciam rapidamente, exigiam pouco cuidado e produziam grandes quantidades de frutos com alto teor de carboidratos. Ao retornar à Inglaterra, Banks (que mais tarde se tornou presidente da Royal Society, a instituição científica nacional mais antiga do mundo) alertou o rei George 3º de suas descobertas, chegando até a oferecer uma recompensa a qualquer pessoa que transportasse mil mudas da planta do Taiti para as Índias Ocidentais.
Logo me vi em uma pequena expedição pessoal da fruta-pão. No Tropical Garden, uma fazenda familiar cheia de flores tropicais e árvores frutíferas na ilha de Moorea, me deliciei com um pedaço doce de uma fruta-pão cozida a vapor mergulhada em tapioca, conhecida como po’e (um pudim de frutas taitiano).
A partir do momento em que provei a sobremesa, com seu sabor rico e cremoso, me apaixonei. Aonde quer que fosse, vasculhava os cardápios em busca de fruta-pão em aperitivos, saladas e até sorvete. Ouvi falar de versões que consistiam na fruta cozida a fogo baixo, saturada em leite de coco fermentado, servida quente com punu pua’atoro, ou carne salgada enlatada, e moída em farinha para fazer pão sem glúten.
Alguns especialistas em plantas dizem que a fruta-pão é um superalimento do futuro, que tem o potencial de acabar com a fome no mundo.
Me perguntei, então, como nunca tinha ouvido falar – ou provado – uma fruta tão importante?
Quase duas décadas após a expedição original de Cook, o rei George 3º nomeou o tenente William Bligh para liderar a expedição da fruta-pão ao Taiti. Em 28 de novembro de 1787, Bligh embarcou com sua tripulação a bordo do HMS Bounty. Sua jornada foi difícil desde o início. Ventos fortes e tempestades reduziram significativamente a velocidade da viagem. Quando chegaram ao Taiti, Bligh e sua tripulação tiveram que esperar mais cinco meses para que as plantas estivessem prontas para o transporte.
Quando chegou a hora de zarpar ao Caribe, os homens de Bligh já haviam se acostumado a viver na ilha – e às mulheres taitianas. Muitos deles não queriam ir embora.
Então, em 29 de abril de 1789, passado um mês de sua viagem pelo Pacífico Sul em direção às Índias Ocidentais, Fletcher Christian e outros 18 tripulantes, descontentes com a situação, forçaram Bligh e seus correligionários a entrar em um barco de 7 m, deixado à deriva. Junto com eles, também se livraram de todas as frutas-pão.
O “mutiny on the Bounty” (“motim do HMS Bounty”) tornou-se uma lenda urbana, e a maioria dos historiadores acredita que o episódio aconteceu porque aqueles que apoiavam Christian acreditavam que ele poderia ajudá-los a voltar ao Taiti – algo que, embora tenha acontecido, não saiu como planejado.
Surpreendentemente, Bligh e sua tripulação sobreviveram, avançando por instinto e memória por 3,6 mil milhas náuticas (6,7 mil km) em 48 dias para Timor, uma ilha no sudeste da Ásia. Bligh logo retornou à Inglaterra, onde foi absolvido de qualquer ilegalidade que tivesse cometido e, dois anos depois, partiu novamente para o Taiti, desta vez completando com sucesso sua missão. Na verdade, algumas das árvores que Bligh levou ao Caribe ainda estão produzindo frutos na Jamaica.
No último dia da minha viagem, me vi no movimentado Mercado de Papeete, a poucos quarteirões da baía no Taiti.
Enquanto outros turistas zanzavam pelas inúmeras barracas que vendiam pareos com estampas coloridas, uma espécie de canga, garrafas de monoï (uma mistura de óleo de coco e flores) e óleos de baunilha e adornos de cabelo perfumados de gardênia, subi as escadas em direção ao Cafe Maeva para provar um prato à base de fruta-pão que até então não havia comido: batatas fritas de uru, ou chips de fruta-pão.
Ao fim da refeição, cheguei a uma conclusão óbvia: essa realmente é uma fruta digna de uma história lendária.
Fonte: BBC

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