Quem olhasse para o céu na noite de 25 de janeiro de 1554, data da missa dos jesuítas José de Anchieta e Manoel da Nóbrega pela fundação da cidade de São Paulo, poderia avistar mais de 4 mil estrelas – caso não houvesse nuvens nem lua.
Hoje, não veria mais do que uma dúzia. A culpada pelo “desaparecimento” dos astros é a iluminação artificial da metrópole, com seus milhões de lâmpadas nas ruas, residências e lojas, além dos faróis de carros. A chamada poluição luminosa não apenas reduziu a beleza do céu noturno, como também causa problemas práticos. Ela prejudica as observações astronômicos e, consequentemente, a realização de pesquisas científicas que ampliam o conhecimento sobre o universo.
Segundo uma cartilha elaborada pelo Laboratório Nacional de Astronomia (LNA), localizado em Itajubá, em Minas Gerais, há três categorias de poluição luminosa. A primeira é o brilho do céu (sky glow), que é aquele aspecto alaranjado, causado pelas luzes, principalmente de lâmpadas de vapor de sódio, indevidamente direcionadas para o alto e para os lados. É pior em áreas com alta concentração de poluentes atmosféricos.
A segunda é o ofuscamento (glare), luz excessiva e direta nos olhos, causando cegueira momentânea. Um exemplo é o carro que trafega com faróis altos na direção contrária a de outro veículo. Por fim, a terceira categoria de poluição luminosa é a chamada luz intrusa (trespass), que é a iluminação de um ambiente que invade o domínio de outro, como, por exemplo, aquela que vem da rua e não permite que o quarto fique totalmente escuro durante a noite.
Embora os problemas que a poluição luminosa causa às observações astronômica tenham se intensificado nos últimos anos, eles não são de hoje. Segundo o pesquisador Vladímir Jearim Peña Suárez, do Projeto Olhai pro Céu Carioca, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, quando o campus do Observatório Nacional do Rio de Janeiro foi transferido para o Morro de São Januário, em São Cristóvão, em 1922, a região era considerada suburbana, com uma densidade de população pequena e isolada.
Com o passar dos anos, o conjunto de lunetas da instituição foi ficando limitado tecnologicamente, prejudicado de forma crescente pelo crescimento da população, com o consequente o aumento da iluminação externa artificial. “Isso fez com que o interesse de usar estes instrumentos profissionalmente fosse diminuindo”, conta Suárez. “As últimas observações profissionais com a luneta de 46 centímetros, a maior do Brasil, datam de 1977.”
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A iluminação artificial tem atrapalhado a eficácia Laboratório Nacional de Astronomia (LNA), localizado em Itajubá, em Minas Gerais
O diretor do LNA, Bruno Vaz Castilho de Souza, lembra que algo semelhante aconteceu com o Observatório de Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), localizado no centro do Rio. “Ele já perdeu sua capacidade de fazer pesquisa há muitas décadas”, lamenta. “Mas o problema se agravou mais nos últimos 15 anos, com o barateamento dos sistemas de iluminação e a política de eletrificação rural, que afeta agora os observatórios de montanha, mesmo longe dos grandes centros. É importante notar que o problema não é iluminar, é iluminar incorretamente.”
Um exemplo mais recente vem do Observatório Astronômico do Sertão de Itaparica (OASI), que começou a operar em março de 2011, no município de Itacuruba, no sertão pernambucano. A escolha do local para instalação do telescópio, o segundo maior do Brasil, com espelho principal de 1,0 metro de diâmetro, obedeceu a critérios técnicos e logísticos. “Ainda que não seja pródigo em montanhas, o semiárido brasileiro tem baixo índice pluviométrico, com noites abertas e secas”, diz Teresinha Rodrigues, da Coordenação de Astronomia e Astrofísica, do Observatório Nacional.
Outra característica da região é que as cidades ainda são pequenas e afastadas umas das outras, contribuindo pouco para a poluição luminosa. “Apesar disso, a iluminação urbana recentemente instalada na cidade de Rodelas (BA), próximo a Itacuruba, tornou-se altamente invasiva, com um fulgor amarelo que se destaca na noite da Caatinga num raio de dezenas de quilômetros”, conta Rodrigues. “No que diz respeito à interferência nas observações astronômicas, já podemos considerar que 15% do céu da região, na direção Sudoeste, estão perdidos para o trabalho de pesquisa.”
A principal instituição de observação astronômica do Brasil também está às voltas com a poluição luminosa. O Observatório do Pico dos Dias (OPD), instalado em 1980, a 1.864 metros de altitude, entre as cidades mineiras de Brazópolis e Piranguçu, possui quatro telescópios, inclusive o maior no Brasil, com um espelho de 1,6 metros de diâmetro. Dois telescópios com espelhos de 0.6 m e um de 0.4 m completam o conjunto.
Segundo Souza, o OPD contribuiu decisivamente para o crescimento da astronomia brasileira, tendo aberto caminho para a participação nacional em projetos internacionais de grande porte, como os telescópios Gemini e SOAR. “O OPD tem também papel fundamental na formação de novos profissionais para a astronomia”, acrescenta.
Economia na conta de luz
Tudo isso está em risco, no entanto. A vida útil do OPD como laboratório científico está sendo comprometida pelo aumento descontrolado da iluminação artificial nos seus arredores. “Considerando o número de habitantes e a distância em linha reta ao observatório, as cinco cidades que mais o afetam são Brazópolis, Itajubá, Piranguçu, Campos do Jordão e Piranguinho”, informa Souza. “É preciso conscientizar a população e os governos municipais para a existência do problema e promover ações concretas visando impedir o avanço da poluição luminosa e, até mesmo, revertê-la.”
Há várias iniciativas nesse sentido, tanto no Brasil como no exterior. “Os projetos em outros países com tradição astronômica estão bem mais avançadas”, diz Souza. “Não faltam exemplos de casos bem-sucedidos, como nas cidades de La Serena e Monte Pátria, no norte do Chile, e a ilha de La Palma, nas Ilhas Canárias (Espanha), que reduziram drasticamente a poluição luminosa e agora economizam na conta de luz.”
De acordo ele, isso pode ser conseguido com cuidados simples. Os sistemas de iluminação devem ser corretamente orientados, de modo a evitar que a luz artificial seja desviada na direção do céu. Nas ruas, estacionamentos e empresas o vidro refrator das lâmpadas deve ser plano, para que a luz seja dispersada para baixo.
Em praças, áreas de lazer, jardins e parte externa de residências deve-se evitar luminárias esféricas (globos), muito comuns no Brasil. “A regra de ouro é iluminar apenas o que for preciso e durante o tempo que for necessário”, ensina Souza.
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A iluminação deixaria de atrapalhar observatórios caso as lâmpadas propagassem a luz para baixo
Além das iniciativas de observatórios e cidades, há também campanhas como a Semana Internacional dos Céus Escuros 2018 (International Dark Sky Week, IDSW2018), e associações, como a The International Dark-Sky Association (Associação Internacional do Céu Escuro), que se dedicam ao tema.
“Em 2007, cientistas e formuladores de políticas de cerca de 50 países se reuniram em La Palma para a primeira Conferência Internacional em Defesa da Qualidade do Céu Noturno, produzindo uma declaração sobre ‘proteger o céu como um direito básico para toda a humanidade’”, conta.
Souza diz que no Brasil ainda há poucas iniciativas concretas, mas com o crescimento das cidades do interior próximas aos observatórios, como o Pico dos Dias (Brazópolis e Piranguçu) e o Observatório Municipal Jean Nicolini (Campinas), as ações são mais que nunca necessárias. “O Observatório de Campinas tem trabalhado junto à prefeitura para criar uma legislação municipal”, informa.
O LNA, além de fazer campanhas com o público da região e produzir material informativo, tem feito esforços junto às prefeituras locais para a troca da iluminação incorreta. “Itajubá, por exemplo, está trabalhando para a criação de Parceria Público-Privada (PPP) para fazer isso e Brazópolis e o LNA pretendem submeter projeto para o mesmo fim em breve”, informa Souza.
Fonte: BBC
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