As florestas sagradas que protegem igrejas e resistem ao desmatamento na Etiópia.
Um grupo de crianças ouvia uma história sob a sombra de um zimbro em uma pequena floresta perto de Debre Tabor, no norte da Etiópia.
Três mulheres andavam ao longo de um caminho, o som de suas conversas permeando as densas árvores enquanto nosso grupo de 12 pessoas, claramente estrangeiros, se aproximava.
Quando as crianças nos viram na borda da floresta, vieram correndo, saltaram sobre uma parede de pedra baixa e se aproximaram curiosamente de nós.
Eu acompanhava um grupo de pesquisadores liderados pela ecologista Catherine Cardelús, da Universidade Colgate, nos Estados Unidos, e Bernahu Tsegay, da Universidade Bahir Dar, na Etiópia, que estavam ali para aprender sobre a ecologia da floresta.
As crianças, no entanto, já eram especialistas no assunto. Conheciam cada centímetro do lugar por terem crescido em meio àquelas árvores, na única floresta que já viram na vida.
Eu estava em uma “floresta sagrada”, uma das mais de mil espalhadas pela paisagem e que formam uma rede quase perfeita, com cada uma protegendo uma igreja ortodoxa tradicional da Etiópia em seu centro.
Esses pequenos grupos de árvores, cada um a cerca de 2 km de distância um do outro, asseguram que a população local nunca esteja longe das florestas que estão profundamente enraizadas em sua vida social e espiritual.
Eles são usados como centros comunitários, locais de reunião, cemitérios e até banheiros; são também parte de cerimônias religiosas cristãs e fornecem a única sombra por quilômetros.
Algumas destas florestas sagradas são bastante acessíveis, como as da ilha no Lago Tana, que podem ser visitadas em um passeio de barco a meio dia de distância a partir da cidade de Bahir Dar. Mas, nas paisagens montanhosas e rurais a leste de Bahir Dar, estas florestas podem ser mais difíceis de serem encontradas.
Desmatamento generalizado
Cada ponto verde se destaca na paisagem porque ali estão algumas das únicas árvores que restam em um país que sofreu um desmatamento generalizado.
Algumas florestas eclesiásticas têm mais de mil anos, e essas preciosas árvores foram poupadas para preservar a sombra que oferecem – uma conservação que é um subproduto da proteção de suas igrejas.
Mas elas são pequenas e estão ameaçadas pela construção de estradas e prédios e pela abertura de campos de cultivo por agricultores. Paradoxalmente, os humanos que as protegem representam a maior ameaça ao seu futuro.
Um padre apareceu à beira da floresta e ouviu nosso intérprete explicar que estávamos ali para aprender mais sobre a relação entre a população local e as florestas em que eles adoram. Ele assentiu, e seguimos até a sombra das árvores, deixando o calor intenso das plantações para trás.
Estas florestas têm em média apenas cinco campos de futebol de área, de modo que levamos só alguns minutos para irmos da borda até a igreja no meio.
Toda floresta consiste em um anel de árvores em torno de uma clareira central. Um muro de pedra rodeava este local, onde uma igreja redonda estava no meio com uma cruz ornamentada no topo e as cores nacionais – vermelho, amarelo e verde – no telhado.
Mais tarde, aprendi que a distância simbólica entre a igreja e essa parede é tradicionalmente descrita como o “quarenta vezes o comprimento do braço de um anjo”.
O padre explicou que as florestas são sagradas porque cada uma delas abriga no centro da igreja um tabot, que se acredita ser uma réplica da Arca da Aliança original, descrita na Bíblia como o objeto em que as tábuas dos dez mandamentos e outros objetos sagrados teriam sido guardados.
Diz-se que a santidade do tabot irradia para fora, de modo que, quanto mais próximo se estiver da igreja, mais sagrado será o espaço.
O mesmo vale para as árvores – elas são vistas como “roupas” da igreja, parte da própria construção, e é por isso que apenas um pequeno anel de árvores foi protegido, criando pequenas florestas.
Imagens aéreas ajudaram a mapear florestas
Florestas assim são, no entanto, mais suscetíveis a distúrbios naturais e causados pelo homem, e essa região sofreu um desmatamento massivo nas últimas décadas. Hoje, apenas cerca de 5% da Etiópia é coberta por florestas, em comparação com cerca de 45% há cerca de um século.
Embora sejam principalmente as árvores entre as pequenas matas que desapareceram, as florestas sagradas também são indiretamente afetadas.
Sentados perto da borda da floresta com o geógrafo da equipe, Peter Scull, vimos um fazendeiro levando seus bois pelo campo vizinho.
Scull contou como a equipe de pesquisadores usou uma série de registros fotográficos históricos para identificar a localização dessas florestas, medir seu tamanho e determinar exatamente como a paisagem mudou no último século.
Ele explicou que, no final da década de 1930, o exército italiano tirou fotos aéreas da região e armazenou as imagens em caixas de munição quando se retirou em 1941. Em 2014, 8 mil imagens foram encontradas no porão do prédio da Agência de Cartografia da Etiópia, em Addis Abeba.
Após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1960, o programa de satélite Corona dos Estados Unidos também passou pela região. O programa usou um satélite espião de foto-reconhecimento lançado durante o auge da Guerra Fria para identificar potenciais locais de lançamento de mísseis da União Soviética.
O ex-presidente americano Bill Clinton retirou o sigilo das imagens em 1995, e uma comparação das imagens históricas com registros modernos do Google Earth mostrou aos pesquisadores que os limites das florestas não diminuíram – e alguns, de fato, cresceram graças ao plantio de eucaliptos para a exploração madeireira.
Mas as imagens mostram que árvores e arbustos costumavam crescer do lado de fora da floresta propriamente dita, o que protegia as árvores do vento, da erosão e das mudanças de temperatura e umidade.
Ameaças
Nas últimas décadas, as árvores nesta área foram derrubadas para serem usadas na construção e como combustível, e as terras, convertidas em campos agrícolas. Não há uma mais transição gradual da floresta para a zona de cultivo.
As fotos também revelam que o que costumava ser um dossel ininterrupto de vegetação agora tem lacunas que deixam a luz do sol entrar onde deveria haver sombra. E, com menos árvores entre as florestas, cada uma se tornou um refúgio isolado para plantas e animais. Vistos do ar, os respingos de verdes parecem sobreviventes amontoados em busca de proteção.
As tomadas aéreas, no entanto, não permitem identificar que tipos de árvores estão crescendo, quantas mudas existem, se o solo tem os nutrientes de que as plantas precisam e quanta perturbação humana existe. Para isso, é preciso estar no chão.
Ao longo do dia, os pesquisadores coletaram amostras de solo e folhas de espécies como a cerejeira africana e o zimbro africano, uma árvore nativa de crescimento lento que foi usada para construir igrejas quando era mais abundante.
As crianças se reuniram em torno de nós, timidamente a princípio, mas depois chamando os nomes das árvores no idioma local, rindo quando tentávamos repetir as palavras. Algumas crianças perguntaram se essa era a floresta mais linda que já vimos.
No entanto, não estávamos em uma floresta tropical exuberante ou nas infinitas florestas de coníferas da América do Norte. Florestas como essa, onde há muitas estruturas feitas pelo homem, como caminhos e clareiras, tendem a ter uma abundância de plantas densas que sufocam o crescimento de outras, e há muitas árvores não nativas crescendo no lugar de espécies nativas.
As florestas estão vivas, mas não estão em ótima forma. E, quando chegar a hora daquelas crianças assumirem o papel de preservá-las, não se sabe o que restará.
Uma floresta saudável deve ter um dossel robusto e árvores jovens.
“Algumas das florestas que visitamos têm essas árvores grandes e lindas”, disse a ecologista Carrie Woods, “mas o problema é que você olha por baixo e só vê grama e pedras”. Em algumas florestas, não há uma próxima geração de árvores.
No entanto, mesmo que as florestas não sejam robustas, Cardelús diz que elas também não estão sendo degradadas tanto quanto se temia. Algumas paróquias estão tomando medidas para fortalecer a saúde da floresta, adicionando um muro de pedra ao redor do perímetro externo para evitar que o gado entre para pastar. E isso ajuda um pouco, ao permitir que mudas cresçam.
As paróquias também tiram aproveito de programas governamentais que fornecem mudas grátis. Infelizmente, as mudas são frequentemente de árvores não nativas, como o eucalipto, que crescem rápido enquanto espécies nativas são de crescimento mais lento.
As plantações de eucaliptos surgiram nas bordas de muitas florestas sagradas e tornaram-se centrais para a economia. Em um país que precisa de sua escassa madeira para cozinhar e construir, o eucalipto tem sido um salvador e, no final, trata-se de uma escolha difícil equilibrar a preservação de espécies nativas e a necessidade de vender madeira de espécies de rápido crescimento.
Até agora, a equipe visitou 44 florestas sagradas, subindo colinas, cruzando riachos e campos até os topos de montanhas, onde entrevistaram padres sobre a administração religiosa da floresta e coletaram amostras de solo e folhas para medir a biodiversidade.
Cardelús espera que as informações coletadas ajudem nas estratégias de conservação, como criar viveiros para mudas nativas, remover espécies exóticas ou daninhas e limitar mais construções dentro das florestas.
“Mas, no fim das contas,”, disse Cardelús, “nossa pesquisa mostra que são as pessoas que precisam dessas florestas que as preservam, então, devemos celebrar o que os locais fizeram, ajudá-los a fazer melhor e apoiar a conservação em outros lugares.”
No final da tarde, a novidade de nós, como visitantes, parecia ter desaparecido apenas parcialmente. Um pastor tirou uma foto nossa com o celular. Cardelús agradeceu ao padre e, mais uma vez, as crianças nos acompanharam.
Um menino tirou uma flauta feita à mão e conduziu-nos para fora da floresta e de volta para os campos, dando risadas de seus companheiros. Ficou claro que a vida espiritual e cultural da comunidade está entrelaçada com essas árvores.
Apesar do pequeno tamanho destas florestas e da quantidade de perturbações causadas pelos humanos, o apego cultural a estes lugares – que são adorados e percorridos há centenas de anos – tem sido a ferramenta de conservação que os salvou.
Fonte: BBC
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