Propostas de redução e extrativismo ameaçam áreas protegidas.
Do norte do Espírito Santo ao extremo sul da Bahia estende-se o maior abrigo de biodiversidade marinha do Atlântico Sul: o Banco de Abrolhos. Uma faixa de até 200 km de extensão entre o litoral e o mar aberto, com água rasa, quente e de até 30 metros de profundidade proporciona um ecossistema rico em espécies endêmicas, como o coral-cérebro. Já os chapeirões são estruturas únicas desta região – colunas coralíneas que sobem desde 20 de metros e, na superfície, formam os parcéis com até 50 metros de diâmetro.
“Esse ambiente proporciona toda a biodiversidade que vemos aqui e atrai as baleias”, observa Eduardo Camargo, presidente do Instituto Baleia Jubarte. Na época de reprodução, de julho a novembro, entre mil e 2 mil desses cetáceos migravam para o Banco de Abrolhos na década de 1990. Na estimativa mais recente, de 2015, 17 mil baleias já habitavam a região durante o período. Para este ano, os funcionários do instituto esperam contar 20 mil.
Entretanto, um novo perigo ronda o Banco de Abrolhos. Em um parecer, técnicos do Ibama alertaram sobre a ameaça que um vazamento de óleo representaria para a biodiversidade da região. Mesmo assim, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, autorizou o leilão de sete campos de petróleo na região em outubro deste ano. No ofício, Bim ressaltou que, apesar do aval, a empresa que arrematasse os campos estaria sujeita ao processo de licenciamento ambiental e que, se comprovados os riscos, a autorização poderia ser negada.
“Um acidente de grandes proporções de atividades de óleo e gás, a exemplo do ocorrido no Golfo do México, seria fatal para essa região. Todas as simulações e modelos matemáticos mostram que, em caso de acidente, esse óleo avançaria sobre o Banco de Abrolhos”, avalia Camargo. “Imagina essa mancha navegando pelo mar, na coluna d’água, grudando em todos esses corais e na região rasa cheia de biodiversidade? É impossível lavar um recife de coral, então o dano seria permanente, irreversível.”
Camargo atribui a recuperação da população das jubartes à proibição da caça comercial internacional. Outro fator foi a criação do Parque Nacional Marinho de Abrolhos, em 1983, entre Caravelas, na Bahia, e São Mateus, norte do Espírito Santo. O parque abrange apenas 2% da área total de Abrolhos, mas garante a preservação das principais espécies. Já o Instituto Baleia Jubarte nasceu em 1988e realiza pesquisas, monitoramento, campanhas de educação ambiental. Além de estratégia de conservação, o turismo de observação das baleias tornou-se fonte de emprego e renda em cidades de Vitória, no Espírito Santo, até a praia do Forte, no norte da Bahia.
“Agora, vivemos um cenário totalmente novo”, observa. “Temos uma população enorme de baleias, mas elas convivem com riscos que não existiam antes da caça industrial: navegação abundante, ruídos sonoros de exploração de gás e petróleo, redes de pescas em grandes quantidades espalhadas pelo litoral.” Para harmonizar atividade econômica com preservação ambiental, as informações do instituto orientam rotas de navegação, para prevenir colisões. Pescadores, por sua vez, evitam áreas de grande concentração de baleias ao instalarem suas redes.
Camargo defende a ampliação das áreas protegidas de Abrolhos em 20% a 30%. Na visão dele, isso asseguraria “o equilíbrio e a gestão adequada das áreas naturais, com ações de amortecimento que afastem definitivamente iniciativas com grande potencial de destruição”.
Oceanos pelo clima e pela biodiversidade
Está comprovada a função dos oceanos na regulação do clima. Esses corais e seres fixam carbono e garantem equilíbrio químico entre as concentrações no mar e no ar, observa Camargo. “As próprias baleias, com 40 toneladas, estão ligadas à fixação de carbono, além de cumprirem com um papel cíclico de nutrientes das calotas polares, que são repostos aqui quando elas morrem. O equilíbrio já veio bem montado, os seres humanos que mexem demais nele.”
Além da questão climática, o grande desafio da humanidade hoje é conter a perda de biodiversidade, acredita Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e pesquisador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. “A relação principal entre os dois problemas é a ocupação humana dos recursos naturais, enquanto o equilíbrio entre as espécies é o que mantém os ecossistemas em funcionamento no nosso planeta. Se perturbado, esse equilíbrio pode ser comprometido em questões como polinização, clima, chuvas”, ele explica.
Artaxo considera que ambas questões precisam ser objetos de convenções mundiais. “Como o Protocolo de Kyoto protegeu a humanidade da destruição da camada de ozônio, precisamos de novos protocolos de clima e de biodiversidade”, diz. Essa discussão deve começar na COP-25, que acontecerá em dezembro em Santiago, capital do Chile.
Cerca de 1 milhão de animais e plantas, ou 25% das espécies, estão ameaçadas de extinção no planeta, constatou a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês). O relatório foi divulgado em maio passado e ressaltou que áreas de proteção são grandes ferramentas para frear a perda de biodiversidade. Tão importante quanto criá-las, continua Artaxo, é estruturar mecanismos que mantenham a integridade dessas áreas protegidas.
Áreas (des)protegidas
No Brasil, há 2309 unidades de conservação (UC) federais, estaduais e municipais, que correspondem a 18,60% (1,58 mi km²) do território continental e 26,45% (963,2 mil km²) do bioma marinho costeiro. Essas áreas protegem 28,08% da Amazônia, 8,26% do Cerrado, 8,83% da Caatinga, 9,50% da Mata Atlântica, 4,55% do Pantanal e 3,14% do Pampa. Com a criação do Sistema Nacional das Unidades de Conservação (Snuc), em 2000, as áreas foram divididas entre proteção integral e uso sustentável.
Cada real investido em unidades de conservação gera retorno de R$ 7 para a economia brasileira, constatou um estudo do ICMBio publicado em dezembro de 2018. A pesquisa levou em conta dados de 2017, ano em que número de visitantes a UCs foi de 10,7 milhões de pessoas – alta de 20% em relação a 2016. No período, a frequência de público era monitorada em 102 unidades. Segundo o instituto, o turismo em torno de áreas protegidas agregou R$ 3,1 bilhões ao PIB, além de girar mais R$ 8,6 bilhões em setores como hotelaria e alimentício.
“Na avaliação que temos de acordo com o histórico, as UCs ainda funcionam como grandes protetoras da vegetação, enquanto as terras indígenas têm maior grau de proteção em geral”, observa Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia é Demais Biomas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Normalmente, a quantidade de derrubadas dentro das UCs não atinge nem 1% do desmatamento total. A supressão vegetal ocorre em grande parte fora das UCs.”
No entanto, dados do Inpe, obtidos pela National Geographic por meio do programa Terra Brasilis, apontam que o desmatamento tem crescido nas unidades de conservação na Amazônia Legal. Em junho deste ano, 81,93 km² foram suprimidos – pouco mais que o dobro do mesmo mês do ano passado,34,74 km². As regiões mais afetadas no mês passado foram a Floresta Nacional do Jamanxim (12,01 km²), a Área de Proteção Ambiental do Tapajós (8,33 km²), a Estação Ecológica da Terra do Meio (6 km²) e a Reserva Biológica da Serra do Cachimbo (4,73 km²). No último calendário do desmatamento (de agosto de 2017 a julho de 2018), 155,72 km² haviam sido derrubados. Já de agosto de 2018 até 5 de julho passado, 230,89 km² foram suprimidos.
Para Angela Kuczach, bióloga e diretora-executiva da Rede Pró UC, não se trata de um conflito entre ambientalismo e agronegócio, mas entre conservação e grilagem de terra. “As áreas da Amazônia se encontram em um processo de fragilidade porque não tem efetivo. São menos de 2 mil funcionários do ICMBio para cuidar de 75 milhões de hectares de áreas protegidas no Brasil”, observa.
“Hoje, o governo federal tem um posicionamento de que precisa rever várias metodologias, porque em teoria não estavam adequadas. Mas, ao mesmo tempo, não vemos quais novidades estão vindo, o que tem acontecido na fiscalização, quantas pessoas estão em campo hoje”, avalia Kuczach. “Entendemos que há diminuição das atividades. Por não sabermos o que vem a seguir e não vermos nenhum resultado, o desmatamento está aumentando. Os grileiros sabem que os fiscais não estão em campo e aproveitam para invadir áreas.”
Ministérios contra as reservas
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou em maio que a pasta revisará todas as 334 unidades de conservação federais. Ao Estado de São Paulo, Salles disse que as regiões foram definidas “sem critério técnico” e que o resultado da análise será lançado neste segundo semestre.
Já o Ministério da Infraestrutura quer reduzir ao menos 58 unidades de conservação. O governo pretende enviar ao Congresso um projeto de lei que permita reduzir áreas protegidas com estradas federais, ferrovias, portos e aeroportos dentro de seus limites, eliminando “interferências” e promovendo “segurança jurídica” a empreendedores, segundo noticiou o Estado de São Paulo. Entre as áreas de proteção consideradas pelo ministério, 28 situam-se na Mata Atlântica, 17 na Amazônia, sete na Caatinga, quatro no Cerrado e três no bioma Marinho Costeiro. Na lista estão, por exemplo, a Floresta Nacional de Lorena (SP) – a primeira UC do Brasil, em 1934, de uso sustentável –, e os parques nacionais do Itatiaia (RJ) – a primeira unidade de proteção integral, criada em 1937 –, Jamanxim (PA), Pico da Neblina (AM), Iguaçu (PR) e Chapada Diamantina (BA).
Além das unidades listadas pelo governo, um estudo da WWF-Brasil identificou que 110 unidades de conservação na Amazônia estão em risco por obras de infraestrutura, 219 por solicitações para mineração e 14 em função da produção energética, conforme divulgado pela Folha de São Paulo em 3 de julho. A ONG analisou 316 UCs federais e estaduais que abrangem 1,4 milhão de km².
A Estação Ecológica (Esec) de Tamoios figura entre as áreas de proteção margeadas por rodovias federais ameaçadas de redução. Trata-se de uma unidade de proteção integral criada em 1990 na baía de Ilha Grande, no sul do Rio de Janeiro, como condição para a implantação das usinas nucleares em Angra dos Reis. “É uma área natural que por si só tem importância como berçário de fauna marinha, mas, mais do que isso, ela garante a segurança das pessoas na região caso aconteça um acidente nuclear”, observa Kuczach. A região, recém-considerada Patrimônio Mundial Misto pela Unesco, recebeu atenção até do presidente Jair Bolsonaro, que declarou mais de uma vez seu desejo de transformar a região em uma “Cancún brasileira”, em referência à cidade turística do México.
Já o Parque Nacional dos Campos Gerais entrou no escopo de interesse do Ministério da Infraestrutura como “unidade de conservação margeada por ferrovia”. Estabelecida em março de 2006 em Ponta Grossa, Paraná, essa UC compreende um dos últimos refúgios de floresta de araucária do Brasil. Ameaçada de extinção, essa vegetação da Mata Atlântica só possui 3% da cobertura original devido à exploração do pinheiro e apenas 1% da região ainda conta com características de floresta primitiva, conforme relatório do Ministério do Meio Ambiente.
Em 17 de abril, a deputada federal Aline Sleutjes (PSL-RS) enviou um ofício ao ICMBio com o pedido de cancelamento do decreto do parque nacional. Produtores rurais solicitaram o mesmo em carta ao MMA, na qual também reivindicam indenizações. O ministro da pasta, Ricardo Salles, encontrou-se com proprietários em maio e disse que tomará “a decisão que for mais correta. Nós não podemos, pelo conceito de unidade de conservação, fazer com que ela seja refratária à presença do ser humano”. Conforme determinado pelo Supremo Tribunal Federal em 2018, tal anulação só pode acontecer por meio projeto de lei.
Kuczach acompanha de perto a situação no Parna dos Campos Gerais e acredita que “o que tem ali é o interesse de cinco ou seis proprietários que tem áreas muito grandes dentro do parque nacional e não estão dispostos a abrir mão nem mesmo sob processo indenizatório”. Segundo a bióloga paranaense, 70% do processo indenizatório já foi iniciado, com verbas disponíveis, e esses grandes proprietários “correspondem justamente aos outros 30%”.
Para Rafael Fernandes, gerente de restauração florestal da Fundação SOS Mata Atlântica, o bioma já extremamente degradado, com apenas 12,4% de remanescentes, pode sofrer ainda mais com a redução de áreas de proteção. Um estudo recente da ONG identificou 117 km² de desmatamento na Mata Atlântica entre 2017 e 2018, queda de 9,3% em relação ao período anterior, 125 km², até então o maior já registrado no monitoramento desde 1985. Se nove dos 17 estados alcançaram desmatamento zero (abaixo de 1 km²), Minas Gerais, Paraná, Piauí, Bahia e Santa Catarina apresentaram “índices inaceitáveis”, considerou a fundação.
“A floresta tem uma série de serviços ecossistêmicos dos quais somos dependentes. Nesses espaços que é produzida a água que abastece as cidades”, explica Fernandes. “Das espécies classificadas com algum grau de ameaça de extinção, 60% ocorrem na Mata Atlântica, e a eliminação de algumas delas pode gerar um impacto enorme na complexa teia de vida da floresta.”
Fonte: Kevin Damasio – National Geographic
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