Onças da América do Sul são mortas para virar remédio tradicional na China.
Uma pequena matéria foi divulgada no início deste ano em um site de notícias no Suriname com a manchete “Dentes de onça-pintada encontrados com viajantes de saída”. A notícia relatava que três homens chineses haviam sido presos em janeiro pelo porte dos dentes, o que é ilegal no Suriname, onde as onças são uma espécie protegida. Os homens receberam uma “multa alta” e foram “mandados embora”.
Apesar de várias consultas a vários ministérios e à procuradoria, muitos detalhes dos casos ainda não estão disponíveis. Porém, um representante do Ministério de Planejamento, Terras e Gestão de Florestas – responsável por questões de vida selvagem – disse em e-mail que os homens não foram multados e puderam continuar a viagem. Não está claro quem é responsável pela decisão.
No entanto, fica aparente que o caso revela uma rede grande e organizada e de tráfico internacional de onças-pintadas, com os animais sendo “mortos por encomenda”, transformados em joias e em um produto medicinal chamado “cola”, e contrabandeados do Suriname em bagagens de mão em voos comerciais.
O problema ganhou destaque pela primeira vez quando a WWF das Guianas publicou um relatório em 2010. Agora, uma nova investigação conduzida pela organização sem fins lucrativos World Animal Protection (WAP), de Londres, fornece informações sobre quem são os traficantes, como operam e o estrago que estão causando.
A PARTICIPAÇÃO DA CHINA NO SURINAME
A China vem investindo pesado no Suriname, assim como em outros locais da América do Sul. Uma onda de imigração chinesa, que começou há aproximadamente 20 anos, trouxe milhares de pessoas que trabalham como madeireiros, mineiros e, na capital Paramaribo, comerciantes. Os chineses dirigem operações desde grandes projetos de estradas e edifícios a enormes concessões a madeireiras nas florestas.
Estradas de acesso às operações de desmatamento e mineração abriram regiões da floresta antes inacessíveis, e as jornadas de ida e vinda dos expatriados chineses viabilizam a circulação de bens para fora do Suriname. É nesse cenário que o comércio ilegal de produtos de onças se desenvolveu.
“É muito provável que a entrada de cidadãos chineses tenha expandido o mercado doméstico de partes de onças no Suriname”, diz Pauline Verheij, da organização sem fins lucrativos International Fund for Animal Welfare (IFAW). Ela investigou o comércio de onças-pintadas no Suriname no início de 2018, antes de se juntar à IFAW, e encontrou evidências de chineses comprando partes dos animais no Suriname desde 2003. Ela complementa que, além da onda recente de imigrantes chineses, o Suriname conta com uma comunidade considerável de sino-surinameses nascidos e criados no país que também compram os produtos do animal. Algumas pistas mostram que outros grupos também compram, mas em escala muito menor.
“Há rumores de que os filipinos consumam a carne. Depois, qualquer um pode comprar os dentes e presas [para joias]. Às vezes, as peles são exibidas pelos nativos” diz Nicholas Bruschi, responsável por conduzir a investigação do WAP. Mas “são os chineses que parecem lidar com grandes quantidades dos produtos”.
De acordo com a investigação, o maior condutor do comércio é a pasta de onça. Também conhecida como “cola de onça”, a substância tem o aspecto de melaço e é feita a partir da fervura do corpo da onça durante sete dias. Acredita-se que ela auxilie em diversas doenças, desde excesso de sono à insônia. “Não há qualquer evidência que a pasta de onça cure qualquer coisa”, diz Bruschi.
Embora as origens do costume sejam desconhecidas, Bruschi acredita que a pasta de onça seja uma adaptação da pasta de tigre, um “medicamento” tradicional vietnamita em parte responsável pelo enorme comércio ilegal de tigres no Sudeste da Ásia. Embora seja essencialmente um produto vietnamita, parece que a pasta de onça é feita e vendida pelos chineses.
Em chinês, a palavra “onça” pode ser traduzida para “tigre americano” e, em muitos lugares da América do Sul, onças são muitas vezes chamadas de “tigres”. Não está claro se os consumidores chineses estão realmente interessados na pasta de onça ou se não sabem diferenciá-la da pasta de tigre. Também é possível que, ao chegar na China, a pasta de onça seja falsamente rotulada como tigre, diz Bruschi.
A CADEIA DE SUPRIMENTOS
O processo pode começar de duas maneiras. Por vezes, um caçador pode se deparar com uma onça ou um fazendeiro pode encontrar um dos animais caçando seu gado. Eles podem matar o animal e vendê-lo para um intermediário por bastante dinheiro. Esse tipo de caça incidental é comumente causado por medo ou pela perda do habitat da onça-pintada para a pecuária, agricultura, mineração e operações madeireiras. Com menos espaço para caçar animais silvestres, é mais provável que as onças sejam tentadas pelo gado, galinhas e cães em regiões habitadas por pessoas.
Além dessas formas oportunistas de caça, há também a “caça por encomenda”, como Bruschi a chama. Isso acontece quando alguém em Paramaribo decide que precisa de uma onça e espalha para seus contatos nas áreas rurais de que está interessado em comprar. A WAP averiguou que, às vezes, a oportunidade é anunciada nas mídias sociais e por telefone, e pode valer mais do que muitos moradores rurais ganham em um mês.
De acordo com a investigação, podem ser necessários diversos disparos para matar uma onça e, às vezes, muitas horas perseguindo o animal ferido até que o caçador possa disparar a bala mortal. Caso a onça tenha um filhote, ele pode ser deixado para morrer ou vendido no comércio ilegal de animais de estimação.
No Suriname, matar, transportar, comprar, vender e até mesmo possuir uma espécie protegida, como a onça-pintada, é contra a lei, punível com multa de até 134 mil dólares ou seis anos de prisão, diz Nancy del Prado, advogada ambiental com base em Paramaribo. Assim, levar o corpo do animal para a capital, onde ele será processado, envolve uma série de transferências – de um veículo para o outro e de um esconderijo para o outro. “Eles se mantêm em movimento o tempo todo para dificultar as ações policiais”, diz Bruschi.
Quando a onça chega em Paramaribo, ela é normalmente mantida em uma loja de propriedade chinesa. É menos provável que esses estabelecimentos sejam investigados pela polícia uma vez que a comunidade chinesa exerce tanta influência, diz Els van Lavieren, do escritório surinamês da organização Conservação Internacional, de onde ela vem investigando o tráfico desses animais nos últimos dois anos. “A comunidade chinesa controla todos os estabelecimentos aqui. Todos os supermercados são operados por chineses. Eles são importantes para a economia do Suriname”.
A onça será cozida até se tornar uma pasta que, então, é colocada em pequenos recipientes que os traficantes transportam em bagagens de mão, muitas vezes acompanhada pelo bálsamo de tigre, uma pomada de cheiro forte muito usada por atletas para aliviar dores musculares. O bálsamo de tigre ajuda a confundir os cães farejadores do aeroporto, conforme indica a investigação do WAP.
“Muitos chineses viajando de volta para a China estão envolvidos no contrabando”, diz van Lavieren. “Eles vão voltar de qualquer maneira, então levam alguns [produtos de onça] para conseguir um dinheiro extra”.
Na China, diz Bruschi, a pasta de onça é vendida em redes de amigos e familiares, mas ele diz que precisa trabalhar mais para melhor entender esse lado do mercado.
Os dentes da onça-pintada, “de longe” a parte do corpo mais valiosa, de acordo com Verheij, também são uma parte importante do comércio ilegal, vendidos em sua maioria para chineses como colares tanto no Suriname como na China. O comércio ilegal de caninos de onças também foi identificado na Bolívia e em diversos lugares da América do Sul.
Todo o processo, do início ao fim, é “muito sofisticado”, diz um guarda florestal do Suriname, que pediu para não ser identificado a fim de proteger sua investigação em andamento sobre o tráfico. “Eles sabem exatamente o que estão fazendo”.
ONDE ESTÁ A POLÍCIA?
Vanessa Kadosoe, da Coleção Zoológica Nacional do Suriname, que conduz uma pesquisa sobre os números de onças-pintadas no Suriname, preocupa-se com o que acontecerá com a floresta caso as onças desapareçam. Como um superpredador, as onças-pintadas controlam as populações de herbívoros, como veados e cutias. Sem as onças para caçá-los, seus números poderiam explodir, o que por sua vez poderia dizimar espécies de plantas e resultar em animais devorando as plantações. “Se tirarmos os principais predadores, todo o sistema entrará em colapso”, ela diz.
Uma estimativa confiável sobre a quantidade de onças-pintadas no Suriname ainda não existe, mas evidências sugerem que a caça venha causando estragos. O guarda florestal diz que recebe ligações de informantes sobre o abate de uma onça-pintada a cada duas semanas, e fotos de onças mortas aparecem nas mídias sociais regularmente. E Bruschi diz, de forma anedótica, que as onças vêm sendo menos avistadas em certas áreas.
“Minha avaliação, baseada em diversas fontes, é de que a quantidade de onças-pintadas mortas pelas suas partes no Suriname pode chegar a mais de 100 por ano”, diz Verheij. “Não é necessário um biólogo para entender que esses números são altamente insustentáveis”.
“Melhor policiamento é uma das principais melhorias que podemos fazer porque, no momento, há tão pouca fiscalização que as pessoas não têm medo de mostrar suas fotos no Facebook com suas armas e as onças que mataram”, diz van Lavieren.
Não está claro quantas prisões foram feitas relacionadas à venda e ao contrabando de partes de onças. Em um e-mail para a National Geographic, um representante do Ministério do Planejamento Físico, de Terras e Gestão Florestal disse que as estatísticas de prisões e condenações são mantidas, mas que os registros não foram digitalizados e “levaria algum tempo para extrair informações específicas sobre as onças”.
Depois de revisar as reportagens na imprensa sobre prisões relacionadas às onças, Verheij constatou que muitos infratores foram liberados com uma multa, como foi o caso dos três chineses em janeiro, ao invés de serem julgados à máxima permitida por lei. Ela também diz que os controles alfandegários nas fronteiras deveriam ser reforçados e que o governo precisa de melhores investimentos no setor de conservação da natureza para ter equipe, recursos e equipamentos necessários para realizar patrulhas e conduzir investigações.
Kadosoe concorda. Ela gostaria de ver guardas novamente nas estradas, conduzindo revistas nos veículos como faziam na década de 1980. Um maior monitoramento faria com que algumas pessoas pensassem duas vezes antes de transportarem ilegalmente uma onça-pintada.
Atualmente, de acordo com o guarda florestal, ele e seus colegas estão de mãos atadas. Ele diz que não há combustível suficiente para realizarem rondas, uma vez que são destinados apenas 30 litros para cada um, menos de um tanque cheio, para o mês inteiro.
“O que se pode fazer com 30 litros de combustível na floresta? Podemos dirigir até o aeroporto e voltar. Não se pode ir mais longe para averiguar os caçadores e regiões madeireiras” ele diz. “Estou fazendo isso sozinho”.
O ministério reconhece que os recursos são escassos, mas diz que as patrulhas acontecem. “Nossos guardas florestais conduzem patrulhas regularmente, mas há uma enorme área a ser coberta e um orçamento relativamente limitado para se trabalhar” diz a declaração por escrito. Ele também reconhece que não há uma estratégia específica para a conservação de onças-pintadas no momento, apesar de existirem propostas pendentes que abordariam especificamente a proteção das onças.
A boa notícia é que, uma vez que boa parte do Suriname é composta de florestas intocadas, as onças ainda podem contar com áreas naturalmente protegidas, pelo menos por enquanto. Há muito tempo, o Suriname planeja construir uma estrada que atravessaria diretamente a mata, ligando Paramaribo, no norte, à fronteira com o Brasil, no sul, o que abrira faixas remotas no habitat das onças.
Uma empresa chinesa já pavimentou parte de uma estrada até lá.
Fonte: National Geographic
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