sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Os sapos da caatinga brasileira que ficam enterrados na areia sem comer por mais de 2 anos.

Sapo da espécie Pleurodema diploslister após fenômeno chamado estivação, que ocorre com anfíbios em desertos e onde água é escassa
No entardecer de 17 de fevereiro de 1992, no município de Angicos, na caatinga do Rio Grande do Norte, depois de uma chuva fraca durante o dia, o casal de pesquisadores do Instituto Butantan Carlos Jared e Marta Maria Antoniazzi presenciou um fato bizarro: sapos começaram a brotar aos borbotões do chão arenoso.
Saltando a esmo, davam a impressão de estar à procura de poças d’água para se alimentar e acasalar.
Começava ali um longo trabalho de pesquisa dos dois, que se estende há quase três décadas, para entender um comportamento animal pouco conhecido – pelo menos do público leigo: a estivação. Trata-se de um fenômeno semelhante à conhecida hibernação, só que causado pelo calor e a seca em vez do frio.
Assim como os animais que hibernam – dos quais os ursos são os mais famosos -, os que estivam reduzem suas atividades metabólicas por um longo período, podendo chegar a mais de dois anos em algumas espécies.
“É um fenômeno que ocorre com vários anfíbios que vivem em desertos ou em outros ambientes com escassez de água, ao menos temporária”, explica Jared.
“Semelhante à hibernação, induzida pelo frio excessivo, pode-se definir a estivação como o estado de letargia em que esses animais entram em um longo sono, quando as condições climáticas se tornam muito secas e quentes.”
Levados por Jared a também estudar os anfíbios da caatinga que estivam, os fisiologistas Carlos Navas, da Universidade de São Paulo (USP), e José Eduardo Carvalho, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), começaram seu trabalho na região em 2007.
“Nosso objetivo central era investigar quais mecanismos fisiológicos permitiam aos sapos daquela região ocupar este ambiente aparentemente tão inóspito para este grupo de vertebrados”, conta Carvalho.
De acordo com ele, aos olhos de uma pessoa leiga, poderia parecer improvável que qualquer anfíbio, tipicamente conhecidos por sua dependência de locais úmidos e com maior disponibilidade de água, pudesse viver na caatinga.
“Contudo, existem relatos já há bastante tempo da ocorrência de anuros nesse bioma, e nosso trabalho foi no intuito de explorar as caraterísticas que permitiam tal modo de vida”, explica. Apesar das condições adversas, há mais de 40 espécies de anfíbios nesse bioma.
Ao longo dos 30 anos em que pesquisa esses animais na região, Jared e Marta realizaram 15 expedições científicas, 10 das quais a locais de maior probabilidade de surpreender os animais em estivação.
“Em todas elas realizamos escavações no leito de rios temporários, com medidas de aproximadamente um metro de diâmetro e profundidade variando em torno de 1,5 metro”, conta Jared.
“Estudamos as espécies Proceratophrys cristicepsPleurodema diplolister e Physalaemus sp, tanto enterradas durante os meses secos como ativas durante os úmidos.”
Durante a seca, para se defender da desidratação, os animais se enterram ou procuram micro-habitats, onde exista umidade e a temperatura se mantenha mais fria em relação ao meio ambiente.
Na seca, para se defender da desidratação, os animais se enterram ou procuram micro-habitats com umidade e temperatura mais fria
Entre os exemplos extremos desse comportamento está o sapo australiano Neobatrachus aquilonius, que, durante um mês de preparação para a seca, secreta até 45 camadas de pele, que formam um casulo, onde ele aguarda as chuvas e um clima mais ameno. Outra espécie, a Scaphiopus couchii, que vive em desertos norte-americanos, demora cerca de quatro horas para sair da dormência, quando perturbado.
Os anfíbios brasileiros que vivem na caatinga e estivam não chegam a tanto. Eles não entram num torpor tão intenso quanto os sapos australianos e norte-americanos, mas ficam em um estado de depressão fisiológica moderado, com queda pela metade do consumo de oxigênio – medida que indica o gasto de energia.
Além disso, embora fiquem enterrados na areia, numa profundidade que pode chegar até 1,80 m, ao serem encontrados e tocados, eles saltam de imediato, mostrando que seus músculos não se atrofiam durante a estivações.
“No caso de Pleurodema diplolistris, não encontramos diminuição significativa da função muscular”, diz Carvalho. “Os níveis de proteína muscular são mantidos praticamente inalterados, mesmo quando o animal passa longos períodos de inatividade enterrado sob o solo seco dos leitos do rios temporários na caatinga.”
Outras funções de seus metabolismos sofrem alterações, no entanto. Durante a estivação, o estômago dos anfíbios permanece vazio, o intestino encolhe e os ovários das fêmeas ficam cheios, prontos para liberar os óvulos assim que chova.
“A medida que se realiza a escavação, os animais vão sendo expostos e, independentemente da espécie, mostram-se inertes, envoltos por areia úmida, com postura fetal, sempre com os olhos fechados e os membros junto aos corpos”, informa.
“Quando tocados e expostos à luz do dia, respondem com reflexos de fuga, comumente expelindo pela cloaca a água estocada, que se espalha pela areia circundante. Não existe agregação, mas, muitas vezes, os indivíduos podem ser encontrados bem próximos uns dos outros.”
Jared constatou ainda que, ao longo do período de seca, à medida que a água da areia vai evaporando, eles vão migrando gradativamente no sentido descendente. “Nesse contexto, a pele fina e delicada deve trabalhar, detectando rapidamente qualquer diminuição do nível de umidade e fazendo com que o animal se movimente no sentido mais favorável”, diz.
Mas nem sempre dá certo e muitos não conseguem dar origem a nova geração depois da estivação.
“A frenética atividade desses animais pode, também, não ser recompensada, ficando dependente do volume das chuvas”, explica Jared. “É comum, principalmente depois de chuvas de pouca intensidade, deparar-se com poças secas, ou com sua água sendo evaporada rapidamente, mostrando girinos mortos ou agonizando.”
Seja com for, entender como eles funcionam e como lidam com as condições do ambiente ajuda os pesquisadores a compreender, por exemplo, de que forma as mudanças climáticas irão impactar não somente estes grupos de anuros, mas também outros animais.
“Podemos ainda, com os conhecimentos adquiridos sobre os sapos dessas regiões, gerar ferramentas para um potencial desenvolvimento de tecnologias de aplicação médica para uso em humanos”, prevê Carvalho.
“Por exemplo, se entendermos de que forma esses anfíbios regulam seu metabolismo e preservam suas capacidades musculares, podemos tentar transferir este conhecimento para aplicação médica e melhorar as condições de pacientes que permanecem por longos períodos imóveis sobre os leitos e, invariavelmente, estão sujeitos a atrofia muscular.”
Fonte: BBC

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