De agosto de 2018 a julho de 2019, o desmatamento mapeado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no Cerrado foi de 6,4 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quatro vezes o território da cidade de São Paulo.
O Mato Grosso, unidade da federação que concentra a maior área do bioma e que é o maior produtor de soja do país, foi o terceiro estado que mais destruiu, sendo responsável por 14% de todo o desmatamento detectado, do qual 88% feito de forma ilegal e concentrado em latifúndios. Os números foram coletados pelo Instituto Centro de Vida (ICV).
Embora a área do Cerrado desmatada no Mato Grosso tenha se reduzido em 6% em relação ao período anterior, o ritmo da abertura de novas áreas no estado continua “alarmante” na avaliação do ICV.
Para o engenheiro florestal e coordenador de inteligência territorial do instituto, Vinicius Silgueiro, a queda não é significativa, até porque reflete em parte o fato de que mais da metade do Cerrado mato-grossense já foi destruído.
O geólogo, antropólogo e arqueólogo Altair Sales, um dos maiores especialistas em Cerrado do país e que pesquisa o bioma desde a década de 1970, ressalta que a queda “não é nada, porque a destruição do Cerrado no estado já chegou no seu limiar há mais de dez anos”. O que ainda há “são pequenas manchas de vegetação ou de árvores isoladas que não representam comunidades vegetais”.
Somando-se os dados de desmatamento do Cerrado e da Amazônia no estado, o total em 2019 foi de 2.560 quilômetros quadrados, aumento de 10% em relação a 2018, conforme números preliminares do ICV. “Esse cenário mantém o Mato Grosso distante de cumprir o compromisso internacional assumido durante a Conferência do Clima em Paris, em 2015”, diz o relatório da ONG divulgado no início de fevereiro. Na ocasião, o governo estadual se comprometeu a diminuir o desmatamento nesse bioma e atingir 150 quilômetros quadrados ao ano até 2030.
O principal motivo do desmatamento alto, de acordo com o instituto, é o elevado grau de ilegalidade: no período apurado, 88% do desmatamento no Cerrado mato-grossense foi ilegal, uma queda em relação ao período anterior, de 95%, mas ainda um número alto. Em alguns municípios, 100% do desmatamento foi criminoso.
Segundo Silgueiro, chama atenção a crescente concentração do desmatamento ilegal em latifúndios, à medida que foi se reduzindo a fiscalização. Pouco mais de 60% do desmatamento no Cerrado foi em imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e, do desmatamento ilegal detectado nesses imóveis, 64% se concentrou em áreas maiores que 1.500 hectares, um aumento em relação ao período anterior, quando esse número era de 56%. Apenas 1% ocorreu em terras indígenas, e 1%, em áreas de conservação.
“É caro desmatar, precisa de maquinário, mão de obra; custa em torno de dois ou três mil reais por hectare, então isso está sendo feito por gente com poder, ao mesmo tempo em que há menor fiscalização e maior sensação de impunidade”, diz o engenheiro florestal. Desde 2015 o número de autuações do Ibama vem caindo no estado, passando de mais de mil naquele ano para 411 em 2019.
Segundo a professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), Mercedes Bustamante, que pesquisa o Cerrado desde 1993, a mudança de posicionamento governamental em relação ao meio ambiente também tem impacto no avanço do desmatamento. “O que já vimos no passado é que essas mudanças de discurso, mesmo que não estejam ligadas a uma mudança de legislação, já são suficientes para disparar processos no Brasil profundo. Aqui você encontra órgãos federais e estaduais menos estruturados, e o resultado é este.”
Especulação e agronegócio impulsionam desmatamento
Pela lei, uma porção dos imóveis rurais pode ser desmatada, desde que tenha autorização. No bioma Amazônia, que também está presente em parte do Mato Grosso, apenas 20% de um imóvel rural pode ser desmatado, enquanto o restante deve permanecer como reserva legal. No Cerrado, a relação praticamente se inverte: 35% deve ser reserva legal. Mesmo assim, chama a atenção dos pesquisadores a permanência do alto índice de ilegalidade, apesar das ferramentas disponíveis hoje para monitorar e fiscalizar.
Na avaliação de Bustamante, o padrão de desmatamento ilegal está associado a obras de infraestrutura e ao agronegócio. “Quando você olha os municípios mais afetados, é onde há obras de infraestrutura, como abertura de estradas, para facilitar o escoamento de produção agrícola. Então, tem um braço de infraestrutura, associado à especulação, mas é uma especulação que também está ligada a condições mais favoráveis para a produção agrícola”, explica.
Além de ser um estado com tradição de produção pecuária, o Mato Grosso é o maior produtor de soja do país, tendo respondido por 28% da última safra, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema) disse, por meio de nota, que a valorização do dólar americano é um dos fatores que impulsionam o desmatamento, ao elevar os preços das commodities e pressionar as fronteiras agrícolas. A nota também cita “problemas sociais ligados à regularização ambiental dos assentamentos e especulações fundiárias”. O levantamento do ICV mostra, contudo, que os assentamentos responderam por apenas 9% da área desmatada no último período.
Segundo a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), nos últimos três anos “todos os frigoríficos que operam no bioma amazônico e cerrado no Mato Grosso assinaram Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público, comprometendo-se a não comprar gado de produtores que realizam desmatamento nestas áreas”. A Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) do Mato Grosso foi procurada, mas não retornou o contato.
O Ministério Público do Mato Grosso (MP-MT) realizou entre 2018 e 2019 a Operação Polygonum, que apurou crimes ambientais, muitos relacionados a fraudes no CAR, com o intuito de esconder áreas desmatadas ilegalmente, por exemplo. Ao todo, 69 infratores ambientais foram indiciados, incluindo funcionários da Secretaria de Meio Ambiente do estado.
A Sema informou que, em setembro de 2019, a pasta colocou em ação um “intenso monitoramento de todo território” estadual por meio da Plataforma de Monitoramento da Cobertura Vegetal. A meta é autuar remotamente 100% das ilegalidades.
Cerrado é vital para equilíbrio hidrográfico
Apelidado “caixa d’água” do Brasil, o Cerrado é considerado fundamental para o equilíbrio hídrico de todo o continente sul-americano, já que a maioria das bacias hidrográficas da América do Sul nasce e tem seus principais alimentadores na região.
Segundo o geólogo Sales, com o desmatamento, a água da chuva não se infiltra mais no solo como antes, o que provoca a diminuição drástica dos lençóis subterrâneos, por sua vez causando a diminuição da vazão dos rios e fazendo com que eles desapareçam aos poucos.
“A cada ano que passa, a gente constata pelo menos o desaparecimento de dez pequenos rios na região”, diz o professor. Ele ressalta que os pequenos vestígios de Cerrado intacto que ainda existem no país estão sendo preservados em algumas áreas indígenas, mas mesmo estas estão sob ameaça.
A professora da UnB Bustamante ainda lista a mudança local do clima, já que há redução do retorno de água para a atmosfera, erosão da biodiversidade e mais emissões de carbono, combinando efeitos locais e globais.
Segundo Sales, pecuária e monoculturas como a da soja são atividades incompatíveis com a sobrevivência do Cerrado. “Anteriormente, quando o Cerrado ainda estava preservado, isso [cultivar soja e pastagens] seria perfeitamente possível com um planejamento adequado de ocupação do espaço”, afirma.
Para a preservação do que restou do bioma, a estratégia mais aceita é fortalecer e ampliar áreas de conservação e terras indígenas. “Foi uma estratégia que funcionou muito bem para a Amazônia, mas no Cerrado é um pouco mais complicado porque lá a área é majoritariamente privada. Então, parte da solução do problema passa também pelo setor privado”, afirma Bustamante.
Além disso, seria preciso haver fortalecimento da fiscalização, fazer valer a lei ambiental e eventualmente fazer o manejo das áreas já desmatadas e usadas para o agronegócio para melhor aproveitamento e elevação da produtividade.
Fonte: Deutsche Welle
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