quinta-feira, 17 de maio de 2018

A luta segue nos quilombos da Amazônia.

Idílio enganador no Quilombo Boa Vista, Pará:
Na margem do Rio Trombetas, um afluente do Amazonas, as mulheres estão sentadas nos pequenos ancoradouros de madeira, ao lado de um monte de roupas e louças, as crianças brincam na água em torno delas. Acima, subindo a margem íngreme, estão suas coloridas cabanas sobre palafitas, rodeadas de mangueiras e bananeiras, formando o Quilombo Boa Vista.
Quilombos eram as aldeias onde se refugiavam os escravos em fuga, e onde hoje vivem seus descendentes. Durante a época colonial e mais além, africanos foram escravizados e traficados para o Brasil aos milhões. Apenas 130 anos atrás a escravatura foi abolida no país. No entanto isso não resultou em melhores condições de vida para os libertados.
“No Brasil, simplesmente não há sentimento de culpa por se ter escravizado certos grupos por tanto tempo. Os políticos não consideram tarefa deles integrar essas pessoas, eles simplesmente as deixam excluídas e vulneráveis a tomadas de terra, latifundiários e empresas mineradoras. É uma catástrofe”, diz Raquel Araújo Amaral, diretora do Setor Quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Santarém, Pará.
Raquel Araújo Amaral, do Incra: “No Brasil não há sentimento de culpa pela escravidão”
Desde 1988 a Constituição brasileira concede aos quilombos o direito às escrituras de suas terras, como uma forma de reparação. No entanto até hoje apenas 220 dos 3 mil quilombos do país possuem esse documento. O problema é que cada caso deve ser verificado individualmente, até a concessão são 20 passos administrativos.
Ao todo, isso pode exigir mais de dez anos, e no momento todo o processo de concessão está paralisado. “O governo cortou as nossas verbas. O motivo oficial é a crise econômica, mas a coisa simplesmente não tem importância suficiente para a política”, explica Raquel Amaral, cujo órgão para que trabalha é responsável pelo processo. Para os quilombolas, a terra onde vivem é mais do que solo: eles se definem a partir dela, ela é sua pátria.
Silhueta do guindaste paira sobre Quilombo Boa Vista, barulho e luzes perturbam dia a dia moradores
Uma nova escravidão
O Quilombo Boa Vista, situado na selva amazônica, foi o primeiro do país a receber seu título de propriedade, em 1995. Seus habitantes estão em condições bem melhores do que muitas comunidades. No entanto, seguem enfrentando problemas.
A apenas dois quilômetros da aldeia erguem-se desde a década de 70 os prédios vermelhos da Mineração Rio Norte, extratora de bauxita. Quando lavam roupa na beira do rio, as mulheres veem o guindaste de transporte, as sirenes as impedem de dormir, os grandes navios de contêineres assustam os animais.
“Nossa comunidade sofre desde que a empresa chegou aqui. Lá onde eles estão extraindo bauxita eram os nossos campos”, conta a moradora Claudinete Cole de Souza, de 37 anos. “Hoje, nós somos totalmente dependentes da firma. Trabalhamos lá por um salário baixo e em más condições, nós nos sentimos como escravos. Mas aqui não tem outro trabalho, e nós precisamos ganhar dinheiro, porque não há mais campos nem peixes.”
Quilombola Claudinete Cole de Souza: “Vamos ficar aqui e vamos apoiar os outros”
Há muito, denunciam os moradores, a mina poluiu a água e o ar, embora não haja estudos oficiais sobre a qualidade da água. Este seria um caso para as diversas organizações ambientais ativas na região. “Enquanto a companhia mineradora fizer tudo de acordo com a legislação vigente, não podemos fazer nada”, explica Marcelo Borges, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“Estamos vivendo agora um momento em que as leis ambientais são enfraquecidas, atacadas mesmo, pelo governo, a favor das mineradoras e do agronegócio, para que os empresários tenham mais liberdades”, acusa a quilombola Claudinete de Souza, apoiando a cabeça nas mãos. “Estamos totalmente sós, aqui. Como a terra nos pertence, nós temos que lutar sozinhos. Mas a gente não tem advogados.”
Nas mãos dos poderosos
Há anos, o Quilombo Boa Vista luta para receber indenizações condizentes. “O governo dá o título de propriedade e isso é tudo”, diz Rogério de Oliveira Pereira, da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO), da qual Souza é presidente.
“Assim que a escritura é entregue, as pessoas estão por conta da própria sorte. Aí vêm empresas, madeireiros e latifundiários e reivindicam as terras e recursos.” Ninguém contara com isso, admite Rogério Pereira. “Nós pensávamos que o título de propriedade também fosse nos proporcionar educação, saúde e uma presença na política. Infelizmente não é nada disso.”
Ele é pessimista em relação ao futuro: “Nós sofremos muito com a situação da política no Brasil. O patrocínio estatal vai sendo cortado, muita coisa que nós conseguimos em décadas de lutas. Os títulos de propriedade vão muito longe. Quem vai nos ajudar, agora que Lula está na prisão?”
Porém Claudinete Cole de Souza se mostra combativa: “Nossa terra está contaminada e água, poluída. Mas nós vamos ficar. E vamos apoiar os outros quilombos na luta deles pela terra.” Ela está sentada à precária mesa de cozinha, ao seu lado a filha faz o dever de casa à luz de velas. Pela janela, além das copas das árvores, ela olha o céu fortemente iluminado pelos holofotes da mina de bauxita.
Fonte: Deutsche Wellle

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