sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Desmatamento está causando aumento de doenças infecciosas em humanos.

Em 1997, nuvens de fumaça pairavam sobre as florestas tropicais da Indonésia após a queimada de uma área com tamanho aproximado ao do estado americano da Pensilvânia para expansão agrícola, queimada essa que ainda foi agravada pela seca na época. Sufocadas pela névoa, as árvores não davam frutos, forçando a população de morcegos frugívoros a voarem para outros locais em busca de alimento, levando consigo uma doença mortal.
Logo que os morcegos se assentaram nas árvores de pomares malaios, os porcos que lá habitavam começaram a adoecer — presume-se que depois de comerem frutas já mordiscadas pelos morcegos — assim como os suinocultores locais. Até 1999, 265 pessoas haviam desenvolvido uma grave inflamação cerebral, 105 delas vindo a óbito. Foi a primeira manifestação conhecida do vírus Nipah em humanos, que, desde então, vem causando uma série de surtos recorrentes em todo o sudeste asiático.
Ela é apenas uma dentre tantas doenças infecciosas que, antes confinadas à vida selvagem, agora se alastram para áreas que estão sendo rapidamente desmatadas. Nas últimas duas décadas, cada vez mais evidências científicas sugerem que o desmatamento, ao dar início a uma complexa cadeia de acontecimentos, cria condições para que se espalhe entre os humanos uma vasta gama de patógenos mortais — como os vírus Nipah e Lassa, e os parasitas causadores da malária e da doença de Lyme.
Com as amplas queimadas que ainda continuam nas florestas tropicais da região amazônica, assim como em partes da África e do sudeste asiático, especialistas expressam preocupação quanto à saúde de quem vive às margens do desmatamento. Eles também temem que as florestas do nosso planeta deem origem à próxima pandemia.
“Já é algo bem estabelecido que o desmatamento pode ser um grande fator de transmissão de doenças infecciosas”, diz Andy MacDonald, ecologista especializado em doenças do Instituto de Geociências da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara. “Trata-se de um jogo numérico: quanto mais degradarmos e retirarmos os habitats florestais, mais expostos estaremos a situações de epidemias infecciosas.”

Conexão direta

Há suspeitas de que a malária — que mata mais de um milhão de pessoas por ano pela infecção causada pelo parasita Plasmodium, transmitido por mosquitos — ande de braços dados com o desmatamento. No Brasil, embora os esforços de controle tenham reduzido drasticamente a transmissão de malária no passado — de 6 milhões de casos por ano na década de 1940 para apenas 50 mil até a década de 1960 —, há novamente um aumento constante nos casos, simultâneo ao rápido desmatamento e à expansão agrícola. Na virada do século, havia mais de 600 mil casos por ano na bacia amazônica.
Um trabalho realizado no fim da década de 1990 por Amy Vittor, epidemiologista do Instituto de Patógenos Emergentes da Universidade da Flórida, e outros, sugeria um motivo. A retirada de partes da mata parece criar um habitat ideal nas bordas da floresta para a proliferação do Anopheles darlingi — o mais importante transmissor de malária na Amazônia. Após cuidadosas pesquisas na Amazônia peruana, ela descobriu a existência de números maiores de larvas em poças d’água morna parcialmente abrigadas do sol, como as que se formam na beira de estradas abertas no meio da mata, e em água acumulada em meio a detritos, que não é consumida pelas árvores.
“Era nesses [lugares] que o Anopheles darlingi realmente gostava de ficar”, relembra Vittor.
Numa complexa análise de imagens de satélite e dados sanitários publicada recentemente no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, MacDonald, em conjunto com Erin Mordecai, da Universidade de Stanford, relatou um impacto significativo na transmissão de malária, causado pelo desmatamento em toda a bacia amazônica, alinhado ao previsto em pesquisa anterior.
Entre 2003 e 2015, os pesquisadores estimaram que, em média, um aumento na perda florestal de 10% ao ano tenha causado um aumento de 3% nos casos de malária. Por exemplo, em um ano do estudo, o desmatamento de uma área florestal de 1,6 mil km2 — o equivalente a quase 300 mil campos de futebol — teve relação com um aumento de 10 mil casos de malária. Esse efeito foi ainda mais acentuado no interior da floresta, onde ainda restam trechos florestais intactos, proporcionando o habitat úmido na borda da mata que os mosquitos apreciam.
Com as contínuas queimadas da Amazônia, esses resultados são um mau presságio. Os dados mais recentes, anunciados nesta semana, revelam que, só neste ano, já se destruiu uma área equivalente a 12 vezes o tamanho da cidade de Nova York.
“Estou preocupado com o que vai acontecer com a transmissão da doença após o fim das queimadas”, diz MacDonald.
É difícil fazer generalizações sobre a ecologia dos mosquitos, que varia de espécie para espécie e de região para região, enfatiza Vittor. Na África, os estudos revelaram pouca relação entre a malária e o desmatamento — talvez porque as espécies de mosquitos daquela região preferem acasalar em corpos d’água expostos ao sol e priorizam os campos abertos em vez da sombra das áreas florestais. Mas em Sabah, na parte malaia da ilha de Bornéu, os surtos de malária também ocorrem simultaneamente aos picos de devastação florestal para cultivo de óleo de palma e outros produtos.

Febre da selva

Os mosquitos não são os únicos animais capazes de transmitir flagelos mortais aos humanos. Na verdade 60% das novas doenças infecciosas manifestadas em seres humanos — como o HIV, o Ebola e o Nipah, todas originadas em animais florestais — são transmitidas por uma gama de outros animais, sendo, em sua maioria, animais silvestres.
Num estudo de 2015, pesquisadores da Ecohealth Alliance, organização sem fins lucrativos de Nova York que acompanha as doenças infecciosas no mundo todo, junto a outros pesquisadores, descobriram que “aproximadamente um em cada três surtos de doença(s) nova(s) e emergente(s) está ligado à mudança no uso da terra, como o desmatamento”, afirmou o presidente da organização, Peter Daszak, em tuíte publicado neste ano.
Muitos vírus habitam seus hospedeiros florestais de forma inócua, porque esses animais evoluíram junto com tais vírus. Os seres humanos, porém, podem transformar-se em hospedeiros involuntários de patógenos ao se aventurarem ou alterarem o habitat florestal.
“Estamos mudando completamente a estrutura da floresta”, observa Carlos Zambrana-Torrelio, ecologista especializado em doenças da Ecohealth Alliance.

Atração fatal

Também podem ocorrer doenças nos casos em que os novos habitats atraem espécies hospedeiras de doenças.
Por exemplo, na Libéria, desmatamentos destinados ao cultivo de óleo de palma atraem hordas de camundongos tipicamente florestais, que vêm pela abundância do fruto da palmeira nos arredores das plantações e assentamentos humanos. O ser humano pode contrair o vírus de Lassa ao entrar em contato com alimentos ou objetos contaminados por fezes ou urina de roedores portadores desse vírus ou com os fluidos corporais de pessoas infectadas. Nos humanos, o vírus causa febre hemorrágica — o mesmo tipo de enfermidade causada pelo vírus do Ebola —, tendo levado à morte 36% dos infectados na Libéria.
Já foram avistados roedores portadores desse vírus em áreas desmatadas do Panamá, da Bolívia e do Brasil. Alfonso Rodriguez-Morales, pesquisador médico e especialista em doenças tropicais da Universidad Tecnológica de Pereira, da Colômbia, teme um aumento na disseminação desses animais após o ressurgimento dos incêndios na Amazônia neste ano.
Esses processos não se limitam a doenças tropicais. Parte da pesquisa de MacDonald revela uma curiosa relação entre o desmatamento e a doença de Lyme na região nordeste dos Estados Unidos.
Borrelia burgdorferi, bactéria que causa a doença de Lyme, é transmitida por carrapatos que dependem do cervo florestal para se reproduzirem e obterem sangue suficiente à sua sobrevivência. A bactéria, contudo, também é encontrada no camundongo-de-patas-brancas, que, por acaso, prolifera-se nas florestas fragmentadas por assentamentos humanos, afirma MacDonald.
O alastramento de doenças infecciosas para os humanos é mais provável nos trópicos porque a diversidade geral da fauna e dos patógenos é maior, acrescenta. Nessas regiões, já se estabeleceu a relação entre o desmatamento e diversas doenças transmitidas por uma vasta gama de animais — desde insetos hematófagos a caracóis. Além das doenças conhecidas, os cientistas temem que diversas doenças mortais ainda desconhecidas estejam à espreita nas florestas, expostas com a invasão do homem.
Zambrana-Torrelio observa que a probabilidade de alastramento dessas doenças para os seres humanos pode aumentar com o aquecimento climático, empurrando os animais, juntamente com os vírus que eles carregam, a regiões nunca antes habitadas por eles, afirma.
Vittor diz que, se essas doenças ficarão confinadas à periferia das florestas ou se conquistarão um espaço entre os humanos, desencadeando uma possível pandemia, tudo depende da transmissão. Alguns vírus, como o Ebola ou o Nipah, podem ser transmitidos diretamente entre humanos, o que teoricamente lhes permite viajar o mundo enquanto o homem existir.
O vírus da Zika, descoberto em florestas de Uganda no século 20, só pôde cruzar o mundo e infectar milhões de pessoas porque encontrou no Aedes aegpti, mosquito abundante em áreas urbanas, um hospedeiro.
“Não gosto de pensar que exista um ou mais patógenos capazes da mesma coisa, mas seríamos ingênuos se não nos prepararmos para essa possibilidade”, diz Vittor.

Um novo serviço

Os pesquisadores da Ecohealth Alliance propuseram que a contenção de doenças seja considerada um novo serviço ecossistêmico, ou seja, um benefício que os humanos recebem de graça dos ecossistemas naturais, como o armazenamento de carbono e a polinização.
Para sustentar essa hipótese, a equipe vem trabalhando na parte malaia da ilha de Bornéu para avaliar o custo exato da malária, item a item, colocando na ponta do lápis cada leito hospitalar e cada seringa utilizada pelos médicos. Descobriram que, em média, o governo malaio gasta cerca de US$5 mil para tratar cada novo paciente com malária na região — em algumas áreas, isso é muito superior ao que gastam com o controle da malária, afirma Zambrana-Torrelio.
Esse prejuízo se acumula com o tempo, superando os lucros que seriam obtidos com o corte de florestas e representando um argumento financeiro convincente para que algumas florestas continuem de pé, afirma Daszak.
Ele e seus colegas estão começando um projeto com o governo malaio para incorporar essa ideia ao planejamento do uso da terra, realizando um projeto similar com o governo da Libéria para calcular o custo com os surtos de febre de Lassa naquele país.
MacDonald vê valor nessa ideia: “Se conseguirmos conservar o meio ambiente, talvez possamos, de quebra, proteger a saúde”, afirma. “Acho que esse é o lado positivo que precisamos ter em mente.”
Fonte:  Katarina Zimmer – National Geographic

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