Desde o final de janeiro, o Sudeste brasileiro sofre com sucessivas chuvas torrenciais. No estado de São Paulo, as pancadas iniciaram na tarde do último domingo, 9 de fevereiro, e se estenderam pela madrugada. Em um dia, o volume foi suficiente para transbordar os dois principais rios da capital paulista, o Tietê e o Pinheiros. Em apenas 24 horas, o volume de chuvas na capital paulista foi de 92,4mm – o equivalente a 42,6% dos 216,7mm da média para fevereiro. Até às 7 da manhã desta terça-feira, já choveu 215,5mm, ou 99,4% do esperado para o mês. As informações são do Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (CGE), da Prefeitura de São Paulo.
Ao longo de segunda, o Corpo de Bombeiros recebeu 10.371 ligações, que resultaram em 2.345 ocorrências relacionadas a enchentes, desabamentos, deslizamentos e quedas de árvores. A Defesa Civil paulista confirmou sete mortes, 1528 desalojados e 408 desabrigados, em balanço divulgado na manhã desta terça. Já a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o terceiro maior centro atacadista do mundo, ficou abaixo d’água teve prejuízo estimado em R$ 21 milhões.
Em Minas Gerais, mais de 100 cidades ficaram em estado de alerta. Só na capital Belo Horizonte choveu 935,2 milímetros em janeiro, recorde histórico para o mês segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e mais da metade da média anual.Os danos socioeconômicos dão o tom da gravidade do ocorrido no estado mineiro: 59 mortes ligadas às tempestades, mais de 45 mil pessoas desalojadas e 8 mil desabrigadas, de acordo com a Defesa Civil estadual.
As fortes chuvas, que também se instauraram no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, chamam a atenção para a variabilidade do ciclo hidrológico – um dos reflexos mais preocupantes do aquecimento global no Brasil. Esta mudança é representada pela maior frequência de eventos climáticos extremos: as estiagens são mais duradouras e intensas, assim como as épocas chuvosas.
“No Brasil, a alteração do ciclo hidrológico já está acontecendo agora. Não é uma coisa para 2100”, observa Paulo Nobre, coordenador do Modelo Brasileiro de Sistema Terrestre (BESM), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).O cientista considera uma irresponsabilidade tratar esses fenômenos extremos, a exemplo das chuvas intensas no Sudeste, como se fossem eventos episódicos que só acontecem uma vez a cada cem anos.
Se as emissões de gases de efeito estufa e, por consequência, a temperatura média global continuarem em alta, “as regiões Norte e Nordeste e parte do Centro-Oeste sofrerão uma redução nas chuvas, com períodos de estiagens predominantemente mais longos, mas talvez sem a compensação de chover mais no período chuvoso”, projeta Nobre. “No Sul e no Sudeste, a tendência dos biomas ali representados é que também ocorram secas mais extremas e duradouras, intercaladas por períodos muito chuvosos.”
Nobre atualmente investiga as mudanças mais próximas que acontecerão em decorrência da emergência climática no Brasil. O estudo deve ser publicado no início deste ano. “Como nossos modelos subestimam a taxa de crescimento da variação do clima”, avalia o cientista, “se olhar as projeções para o final do período desse século, você terá uma apreciação mais precisa das variações da próxima década”. As secas sem precedentes na Amazônia em 2005 e 2010, intercaladas por uma grande enchente em 2009, e a estiagem no Sudeste de 2015 e 2016 demonstram “casos pilotos dessa variabilidade”.
A resposta à emergência climática
Em novembro de 2020, representantes dos 195 países signatários do Acordo de Paris estarão novamente reunidos em Glasgow, no Reino Unido, para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Entre os objetivos principais COP-26 está a readequação das metas nacionalmente determinadas (NDCs).
As ações precisam ser mais ambiciosas para manter o aumento da temperatura abaixo de 2°C comparado aos níveis pré-industriais (1850-1900) e, de preferência, limitá-lo em 1,5°C. Para isso, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) concluiu, em um relatório especial de 2018, que os governos precisam alcançar neutralidade nas emissões de dióxido de carbono até 2050 e de todos os gases de efeito estufa (GEE) até 2070.
O Climate Action Tracker (CAT) projeta uma elevação em2,8°C até 2100 caso todas as metas atuais sejam cumpridas, conforme análise publicada em dezembro de 2019. Contudo, diante das crescentes emissões de GEE, o consórcio estima que o planeta caminha para um aumento de 3,2°C.
“O custo das mudanças climáticas está se tornando muito alto”, avalia Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Em 2019, o Fórum Econômico Mundial, em Davos, ao elencar os principais riscos globais colocou a ausência de ação climática, ou a ação menor do que a necessária, e os eventos extremos, além de outros relacionados, como degradação de ecossistemas e questões ligadas a água.”
Rittl considera que a pressão dos ativistas jovens, que movimentam greves semanais pelo clima no mundo inteiro, tem obtido reações dos tomadores de decisão. Em novembro passado, o Parlamento Europeu declarou a emergência climática. Noruega, Nova Zelândia e Alemanha adotaram objetivos para zerar suas emissões de GEE até 2050 e a África do Sul deve reduzir as suas pela primeira vez.
Quando se trata do enfraquecimento das ações climáticas, o relatório do CAT destaca o Brasil, onde há uma “contínua inversão das políticas ambientais”. O consórcio enfatiza a alta no desmatamento da Amazônia que já se estende por uma década, diante de alterações para abrandar leis, cortes de orçamento e desestruturação dos órgãos de fiscalização e combate ao desmatamento.
Na COP-21 em 2015,O Brasil estabeleceu como compromissos oficiais reduzir as emissões de GEE em 37% comparado aos níveis de 2005, até 2025, e 47% em 2030. Para atingir tais metas, o país comprometeu-se a ampliar para 18% a parcela da bioenergia e 45% de energias renováveis em sua matriz energética até 2030, além de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas. Em 2009, o país havia estabelecido como objetivo limitar em 2 bilhões de toneladas de GEE e, até este ano, reduzir o desmatamento ilegal na Amazônia para no máximo 3.925 km².
“Lógico que as emissões brasileiras não são as únicas responsáveis pelos impactos das mudanças climáticas no nosso território”, continua Rittl. “Todos os países que estão fazendo menos do que deveriam contribuem para os impactos sofridos em cada centímetro quadrado do planeta. Mas a falta de ação do Brasil significa que estamos fazendo um furo no mesmo barco no qual está toda a humanidade.”
O Perfil dos Municípios Brasileiros, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2018, chama atenção aos desastres naturais provocados por questões climáticas. Entre 2013 e 2017, 2.706 municípios (48,6%) tiveram secas, 1.726 (31%) alagamentos, 1.515 (27,2%) enxurradas, 1.093 (19,6%) processos erosivos acelerados e 833 (15%) deslizamentos. O instituto constatou ainda que 59% dos municípios não possuíam instrumentos de prevenção de desastres e somente 14,7% contavam com plano de contingência ou prevenção para a seca.
“O Brasil é bastante vulnerável às mudanças climáticas. Em 2019, a gente teve chuvas muito fortes em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, que provocaram mortes. No semiárido do Nordeste, muitas regiões saíram da pior seca em décadas”, diz Rittl. “Se a comunidade internacional não for responsável para enfrentar as mudanças climáticas no sentido de urgência e com a responsabilidade que exige, o preço a ser pago vai ser muito pior.”
O futuro da Amazônia
Os continentes aquecem mais rapidamente do que os oceanos. Se a temperatura média global chegar a 3°C, nas plataformas continentais ficará entre 3,5°C e 4°C, principalmente nas tropicais como a América do Sul. O aumento está em 1,1°C comparado aos níveis do período pré-industrial (1850-1900), segundo a Organização Meteorológica Mundial.
Na Amazônia, por sua vez, a crise climática resultou na elevação em 1,5°C. Em áreas desmatadas, já supera os 2°C. “Todas as projeções mostram o aumento do que chamamos de sazonalidade das chuvas. Elas ficam mais concentradas na estação chuvosa. Já o período de seca aumenta tanto na Amazônia quanto no Cerrado”, observa o climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).
Às consequências do aquecimento global somam-se os reflexos do desmatamento. Na Amazônia Internacional – que envolve Brasil (60% do território), Peru (13%), Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela –,17% da cobertura vegetal natural já foi suprimida. Na porção brasileira da floresta, o total desmatado gira em torno de 20%.O desmatamento cresceu na Bolívia, na Colômbia e, principalmente, no Brasil. O Prodes, do Inpe, constatou que 9.762 km² foram desmatados de agosto de 2018 a julho de 2019 – 29,5% a mais em relação ao período anterior.De 1° de agosto passado a 14 de fevereiro, o Deter já emitiu alertas de desmate na Amazônia Legal em 4.748,42 km².
Esta “combinação perversa de aquecimento global e desmatamento”, continua Nobre, resulta em secas mais intensas, duradouras e frequentes. Isso tem acontecido sobretudo no sul da Floresta Amazônica, do Peru ao Pará. Grande parte das projeções do IPCC, para cenários de 3,5°C a 4°C mais quentes, indica uma sensível diminuição das chuvas no centro-sul e leste da Amazônia e aumento no extremo oeste da floresta, próximo à Cordilheira dos Andes. Nas localidades mais degradadas já são evidentes os reflexos da temperatura elevada.
“Nessa região da Amazônia, a floresta está 3°C mais quente durante a estação seca. Essa secura na faixa toda no sul já indica um efeito adicional, onde a estação já aumentou de três a quatro semanas, comparando com os anos 1970”, explica Nobre. “Essa é a maior preocupação que temos: de as partes central e sul da Amazônia se tornarem um cerrado, no processo de savanização que estamos vendo acontecer.”
Nos últimos 15 anos, a Amazônia viveu três grandes estiagens. Os eventos de 2005 e 2010, relacionados ao clima, foram induzidos pelo acentuado aquecimento do oceano Atlântico ao norte da Linha do Equador. Já a de 2015 e 2016 estava associada ao El Niño no Pacífico Equatorial.
Os repetidos períodos de seca são, provavelmente, reflexos da crise climática, analisa Carlos Nobre. Foram intercalados por épocas de chuvas intensas e inundações históricas em 2009 e 2012. Entretanto, “as secas muito contínuas não dão tempo de a floresta se recuperar”, prossegue o cientista. “Quando ocorre uma estiagem, as árvores vão morrendo por dois, três anos. Se já tem outra logo após, e outra depois, a floresta perde árvores em definitivo. É isso que está acontecendo na Amazônia.”
Os estudos de Nobre indicam que, se o desmatamento passar de 20% a 25% na Amazônia como um todo, a floresta pode atravessar um ponto de não retorno. Isto é, o bioma perderá a capacidade de regenerar-se e se transformará em uma savana.
Tal ameaça, evidentemente, impacta a fauna e a flora. A Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) calculou, em maio de 2019, que 1 milhão de espécies correm risco de extinção devido às mudanças climáticas. Na Amazônia habita o maior número de espécies do planeta.“Dezenas de milhares são endêmicas. Numa savanização estamos falando da perda dessas espécies, pois são próprias de floresta úmida, e não de savanas”, alerta Nobre.
Estima-se também que, no caso de savanização da Amazônia, 200 bilhões de toneladas de gás carbônico seriam liberadas na atmosfera. Isso agravaria a crise climática, visto que a quantidade equivale a cinco anos de emissões globais.
Nobre ainda destaca o reflexo no clima regional e os desdobramentos na agricultura. “A temperatura no Brasil tropical já é próxima dos limites de máximos de produtividade para grãos, como soja e milho”, ele explica. “Quando ocorre uma onda de calor na época do enchimento dos grãos, associada a menos chuva, as perdas de produção podem ser de 20% a 50%. Isso tem acontecido repetidamente tanto no Cerrado quanto em porções da Amazônia.”
Nas regiões do sul do bioma, a soma da elevação de temperatura em 3°C, estação seca mais duradoura e degradação florestal tornam a floresta mais rarefeita e, portanto, mais suscetível ao fogo. Segundo Nobre, aproximadamente 600 mil km² do território amazônico encontram-se nessa condição.
“Na floresta densa, só 4% da radiação solar atinge a superfície do solo. Então, é muito úmido e não tem radiação suficiente para secá-lo”, explica o climatologista. “Quando se aumenta a degradação, as árvores vão sumindo, eleva-se a radiação e o chão fica mais seco. Em um incêndio, o material do solo, a serrapilheira, queima e a floresta fica mais vulnerável a incêndios.”
Para combater os impactos no bioma, Nobre acredita que pelo menos metade dos 12 milhões de hectares de restauração florestal, do Acordo de Paris, deveria se concentrar no sul e no leste da Amazônia. A despeito de não haver sinalização do governo brasileiro em reforçar seus compromissos climáticos, o cientista considera que ampliar para 20 milhões de hectares de reflorestamento “seria a atitude correta tanto para contribuir para retirar CO2 da atmosfera com o crescimento de árvores, como para reduzir o risco de savanização”.
Impactos à saúde humana
O Brasil emitiu 1,93 bilhão de toneladas de carbono em 2018, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG). No levantamento realizado pelo Observatório do Clima, o número representa uma leve alta de 0,3% em relação a 2017. A tendência é que as emissões de 2019 sejam maiores, devido ao acelerado desmatamento e queimadas na Amazônia.
A mudança no uso da terra e floresta, como desmatamento, corresponde a 44% do emitido, seguido pela agropecuária (25%), produção de energia (21%), resíduos (5%) e processos industriais (5%). Pará (13,3%), Mato Grosso (11,7%) e São Paulo (7,6%) são os estados que mais emitem GEE.
Além da questão ambiental, a poluição do ar e a emissão de gases de efeito estufa representam um grande problema de saúde pública. “A alta nas emissões das queimadas aumenta as concentrações de três componentes principais: material particulado, black carbon e precursores de ozônio”, explica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).“Esses três poluentes atmosféricos, que também afetam o aquecimento global, podem ter efeitos danosos na saúde da população, tanto da região amazônica quanto de fora.”
Um aumento de 3°C na temperatura média global resultaria em uma concentração ainda maior de poluentes atmosféricos. “Obviamente, isso vai depender do cenário de emissões de agora até 2050”, observa Artaxo. “O que a gente espera é que a redução da poluição do ar nas grandes cidades, uma demanda da sociedade, possa diminuir as emissões de gases de efeito estufa a nível global. Este co-benefício é extremamente importante, por ser uma pressão adicional para a redução da queima de combustíveis fósseis.”
Artaxo participou de um estudo, realizado pelo Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), queconstatou que moradores de cidades próximas aos focos de incêndio na Amazônia em 2019 tinham 36% mais chance de serem internados por problemas respiratórios.
Houve 2,5 mil internações a mais por mês, em cerca de 100 municípios da Amazônia Legal, sobretudo nos estados do Pará, Rondônia, Maranhão e Mato Grosso, em maio e junho de 2019. Nas regiões mais impactadas pelo fogo, o número de crianças internadas dobrou. A mortalidade infantil associada a problemas respiratórios também se agravou. Em Rondônia, por exemplo, ocorreram 2.398 mortes a cada 100 mil crianças no primeiro semestre de 2019. Foram 1.427 no mesmo período de 2018.
O Ministério da Saúde aponta que o número de mortes associadas à poluição atmosférica subiu 14% em uma década – de 38.782 pessoas em 2006 para 44.228 em 2016. O estudo levou em conta doenças crônicas não transmissíveis, cardíacas e pulmonares, assim como cânceres de pulmão, traqueia e brônquios.A pasta estima que as internações por problemas respiratórios custaram R$ 14 bilhões ao Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2008 e 2019.
Os desdobramentos na saúde pública não se limitam à poluição atmosférica. O relatório Lancet Countdown, de 2018, constatou que pequenas mudanças no regime de chuvas e na temperatura reforçam o poder de disseminação de doenças por vetores e pela água. A capacidade de transmissão do vírus da dengue atingiu alta recorde em 2016 – 9,1% a mais pelo Aedes aegypti e 11,1% pelo Aedes albopictus. As mudanças climáticas também refletiram na maior recorrência de surtos de cólera e malária. O estudo teve participação de 27 instituições acadêmicas de todos os continentes, entre elas a Fiocruz. O Ministério da Saúde estima que haverá surto de dengue em 11 estados brasileiros em 2020.
As ondas de calor representam outra grande preocupação. As regiões tropicais e subtropicais são mais sensíveis a este impacto, já que normalmente possuem temperaturas mais altas. “Em uma cidade como Paris, onde a média no verão é de 25°C, uma onda de calor a aumenta por 7 ou 8°C. O impacto é menor do que, por exemplo, em Cuiabá, no Mato Grosso, onde já é normal fazer 40°C no verão. Se ocorrer, atingirá 47 ou 48°C”, compara Artaxo.
Tanto as ondas de calor quanto as de frio estão associadas à amplificação do ciclo hidrológico, observa Paulo Nobre, o pesquisador do Inpe. “Em período de seca, há menos água no chão para evaporar, então a sensação de calor é maior. Com o aumento da temperatura global, teremos um agravamento nas condições em períodos de falta d’água e calor extremo. Isso tem um rebatimento tremendo na saúde humana.”
A Organização Meteorológica Mundial (OMM) confirmou 2019 como o desfecho da década mais quente desde os anos 1850. Segundo a OMM, o ano passado foi o segundo mais quente da série histórica, atrás apenas de 2016. Duas ondas de calor atingiram a Europa no último verão, com recordes de temperatura na França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Reino Unido. Só na França, 1500 pessoas morreram por conta do calor, principalmente crianças e idosos.
Em parceria com a Fiocruz, o Inpe realiza um estudo sobre a vulnerabilidade térmica no Brasil. Segundo Nobre, os pesquisadores quantificarão o efeito térmico da presença da Amazônia na ocorrência de extremos de temperatura no país inteiro. “Nossos resultados preliminares indicam que a existência da Floresta Amazônica e os serviços ambientais que ela carrega, como a condução de umidade para o interior do continente, funcionam como um fator estabilizante para o clima.”
Diante deste cenário, Nobre considera urgente que as cidades aumentem sua cobertura vegetal. “O óleo que chegou na costa do Nordeste é uma crise explícita – afetou a vida, poluiu, acabou com a pesca. Já a onda de calor é uma crise silenciosa, porque se mistura com a variação do inverno e do verão e nós nos esquecemos de que no passado não era assim.”
Vulnerabilidade litorânea
Migrações motivadas por questões climáticas já são uma realidade no mundo. Em 2018, o Centro de Monitoramento de Deslocados Internos (Idmc) registrou 17,2 milhões de migrações por desastres naturais em 148 países. Já o Banco Mundial estima que 143 milhões de pessoas de países da África Subsaariana, sul asiático e América Latina se tornarão deslocados internos devido à improdutividade agrícola, escassez de água e elevação do nível do mar.
“A falta de condições de vida adequada em cidades, como no interior do Nordeste, em regiões semiáridas que podem se tornar áridas, pode levar a fluxos migratórios para as capitais de seus estados, ou para outras regiões como parte da Amazônia e para o Sul e Sudeste do Brasil”, analisa Carlos Rittl, do Observatório do Clima. “Isso deve impactar em custos como o do sistema de saúde das cidades. E boa parte dessa população talvez não encontre outra solução além de se estabelecer em áreas muito vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas.”
No litoral brasileiro vivem 26,6% dos brasileiros ao longo dos 7.367 km de costa, segundo o Censo 2010 do IBGE. “Nas projeções de elevação do nível do mar, em boa parte das capitais brasileiras, sendo cidades litorâneas, as consequências serão muito severas para a infraestrutura costeira e o sistema de esgotamento sanitário”, analisa Rittl.
Em novembro de 2019, Recife tornou-se a primeira cidade brasileira a reconhecer a emergência climática. Em decreto, a capital pernambucana se comprometeu a zerar suas emissões de carbono até 2050 e estabeleceu como pontos de vulnerabilidade “inundações, deslizamentos, doenças transmissíveis, ondas de calor, seca meteorológica e elevação do nível do mar”.
Os oceanos funcionam como reguladores de temperatura. Além de absorverem boa parte do carbono, distribuem calor por meio das massas d’água e ajudam a equilibrar, junto à atmosfera, o clima do planeta. Contudo, a emissão de gases de efeito estufa tem provocado alterações na temperatura dos oceanos, observa Eduardo Siegle, professor do Instituto Oceanográfico da USP e pesquisador dos impactos costeiros da crise climática.O aumento do nível do mar está relacionado à expansão térmica dos oceanos, assim como ao derretimento das geleiras e calotas na Antártica, no Ártico e na Groenlândia.
“As previsões do IPCC apontam para aumento de 0,4 a 1 metro de elevação até o final do século. Mas as estimativas de estudos que incluem o derretimento de calotas e geleiras, publicadas em revistas de renome, já projetam 2 metros até 2100”, pondera Siegle. No último século, o nível do mar subiu, em média, 20 centímetros.
Siegle observa que, em função do que já foi alterado no planeta até hoje, as consequências nos oceanos e eventos extremos relacionados durarão por décadas, senão séculos. “O nível do mar, por exemplo, continuará a subir mesmo se as emissões parassem completamente hoje. E, claro, isso não está acontecendo.”
De 2009 a 2013, Siegle pesquisou sobre a vulnerabilidade costeira de São Paulo e Pernambuco. Em cada estado, o cientista estudou os impactos em praias muito urbanizadas – Massaguaçu (SP) e Paiva (PE) – e em outras pouco habitadas – Ilha Comprida (SP) e Piedade (PE).
Com a elevação do nível do mar, espera-se que haja retração da linha de costa. Se não houver ocupação urbana, a erosão ocorre sem grandes impactos socioeconômicos e o litoral se adapta a um novo perfil da praia. Já nas regiões urbanizadas o processo de retração encontra barreiras que agravam os impactos.
“Grande parte do litoral brasileiro tem áreas em que já ocorrem problemas erosivos, onde foram construídos muros, espigões, para tentar segurar sedimentos na região”, observa Siegle. “Essas regiões são mais vulneráveis à elevação do nível do mar. O perfil natural da praia, com manguezal ou recife, ajuda a proteger a costa de eventos extremos.”
Os recifes de corais, presentes principalmente ao longo da costa do Nordeste, servem para atenuar a energia da onda em ambientes tropicais, continua o oceanólogo. Um dos reflexos das emissões de gases de efeito estufa consiste na acidificação dos oceanos. Em regiões oceânicas saudáveis, os corais podem crescer e acompanhar a elevação do nível do mar. Contudo, os corais podem morrer em águas mais quentes e acidificadas, no fenômeno conhecido como branqueamento.
Além da acidificação, tragédias externas colaboram para prejudicar a saúde dos corais. É o caso de Abrolhos, onde um estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro identificou que a pluma de sedimentos da lama da barragem da Samarco, em Mariana (MG), contaminou os corais do arquipélago baiano. Outro exemplo é o vazamento de petróleo cru que já atingiu 2 mil quilômetros em praias do Nordeste e do Sudeste desde agosto de 2019.
Em uma pesquisa na região da Bahia, Siegle realizou projeções do nível do mar em praias como Caravelas, Porto Seguro e Corumbau. Ele analisou a alteração na força das ondas quando chegam as praias, caso passem por cima dos recifes de coral com menor atenuação.
“O impacto será muito grande em áreas tropicais do mundo inteiro, porque perderão a proteção e aumentará a força das ondas que chegam nessas regiões, ainda mais do que em praias onde não há recifes”, explica Siegle. “Quando tem uma tempestade, o mar alcança um nível maior e cada vez mais terá essa tendência de inundações mais fortes, frequentes e intensas.”
Em 2019, um furacão devastou duas ilhas das Bahamas, no Caribe, dois ciclones seguidos provocaram destruição em Moçambique, no sul da África, e um tufão deixou dezenas de mortos no Japão. Eventos extremos como esses são mais constantes e devastadores com o aquecimento global. Isso ocorre porque, quanto mais quente fica a água, maior a troca de calor com a atmosfera, resume Siegle.
Para o oceanólogo, há pouco planejamento dos municípios, estados e governo federal em relação à adaptação às mudanças impostas pelo clima no Brasil. Na visão dele, em vez do tratamento como questão de Estado, as políticas dependem da boa vontade dos governantes que assumem os postos. Faltam, por exemplo, marégrafos instalados em toda a costa para monitorar as alterações do nível do mar e obter séries temporais mais longas no Brasil.
“É uma questão global, mas a resposta à adaptação costeira precisa ser federal. Áreas terão que ser recuadas, outras perderão terreno, algumas acabarão protegidas. Tem que planejar de acordo com a situação, e há muito pouco feito”, avalia Siegle. “A má ocupação costeira é um aspecto bastante grave nessa questão, porque os problemas serão exacerbados com as mudanças climáticas.”
Fonte: Kevin Damasio – National Geographic
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