Principal ponto de discussões na COP-25, realizada em dezembro passado em Madri, o artigo sexto do Acordo de Paris trata da regulação do mercado de carbono, que poderia trazer investimentos polpudos para o Brasil. No entanto, a falta de consenso entre os países, a começar pelas dificuldades impostas pelo país, deixou as decisões para o fim deste ano.
Em 2015, como resultado da COP-21 na França, 194 países ratificaram o Acordo de Paris, um marco na história da política ambiental mundial. Toda as nações-membro apresentaram metas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), comprometendo-se a modificar suas atividades econômicas a fim de limitar o aumento da temperatura global em menos de 2°C e preferencialmente 1,5°C, em relação aos níveis de emissões pré-industriais até o ano de 2100. A recomendação é do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC) que reúne milhares de cientistas de todo o mundo. Cada nação, com base em suas realidades, apresentou Contribuições Nacionais Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) que devem ser concretizadas da forma que acharem mais adequada.
Para promover a cooperação entre os países, o acordo prevê, no artigo sexto, a regulação de um mercado de compra e venda de créditos de excedentes de redução de emissões – o famoso mercado de carbono. Trata-se de um mecanismo complementar – não pode ser utilizado em 100% das metas – que pode ajudar países a atingirem a redução de forma mais rápida, enquanto outras ações de transição energética são implementadas.
“A ideia é que o país venda créditos de carbono da sua performance de redução de emissões”, explica Caroline Prolo. “Ao fazer suas políticas de mitigação de GEE, o país pode transferir parte desses resultados para outro e aí serão criadas regras para limitar a quantidade de créditos que poderá ser alocada para essa finalidade.”
Prolo é advogada da área ambiental, consultora do International Institute for Environment and Development (IIED) e participou das negociações em Madri. Ela trabalha voluntariamente para o grupo que reúne os 47 países menos desenvolvidos do planeta e que, por falta de recursos, não têm corpo técnico próprio para garantir seus interesses nas conferências. Alguns deles, como Bangladesh, já sofrem os fortes efeitos da crise climática – como a perda significativa de áreas cultiváveis. “É o grupo que mais precisa de ação”, diz Polo. “Se não evitarmos o aquecimento global, serão eles os primeiros prejudicados.”
O mercado de carbono não é exatamente uma novidade – foi ratificado em 1997 no Protocolo de Quioto – mas como só os países desenvolvidos tinham metas, apenas eles podiam comercializar créditos. O acordo convencionou que cada tonelada de emissão de carbono reduzida equivale a um crédito. Isso significa que caso uma determinada nação reduzisse suas emissões além da meta, podiam vender os créditos excedentes a outros países. O protocolo também já previa que as nações ricas comprassem créditos de carbono ao financiar projetos que reduzissem a emissão de GEE em países em desenvolvimento – usinas eólicas no lugar de usinas termelétricas a carvão, por exemplo. Mas esse dispositivo foi alvo de críticas porque não considerava riscos sociais.
“Tem projetos que receberam críticas, como hidrelétricas que, ainda que reduzam emissões de GEE, trazem diversos problemas sociais e ambientais relacionados”, explica Prolo. “Como o alagamento, a remoção de populações tradicionais e de comunidades indígenas. Havia alegações de falta de direitos humanos.”
Mesmo livres de metas, os países em desenvolvimento que recebiam esses empreendimentos se beneficiavam com os investimentos, a diminuição da poluição atmosférica local e a redução da degradação ambiental. “Isso gerou uma economia forte e o Brasil sempre foi líder nesse tipo de projeto”, conta Thiago Metzker, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Bem Ambiental (Ibam) e membro de um grupo do IPCC que trabalha na criação de um banco de dados sobre estoques de carbono para uso em modelagens climáticas por cientistas.
O Acordo de Paris trouxe novas medidas consideradas uma evolução em relação ao Protocolo de Quioto. Disposto no artigo 6, a maior inovação é o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS) que inclui todos os 196 países signatários do acordo no comércio de emissões de carbono.
“A novidade que o MDS traz é que, além do compromisso de diminuição de GEE, existe um comprometimento com o desenvolvimento sustentável”, avalia Metzker. “Então, o objetivo é que países ricos e empresas aportem recursos para os países em desenvolvimento para auxiliá-los nos upgrades tecnológicos e nessa transição energética.”
O novo contexto do mercado de carbono tem animado diversos setores que veem a possibilidade de o comércio de emissões acontecer de forma global, com real transferência de créditos vindos de mitigação, chamada de Internationally Transferred Mitigation Outcomes (ITMO). A expectativa é que os mercados internos já existentes na China e União Europeia, por exemplo, possam participar do comércio de emissões global, conectando mercados subnacionais e permitindo escalas maiores de trocas.
“Eu acho que o mercado de carbono é muito bem-vindo. Em nível nacional funciona para trazer outros setores para essa agenda, como transporte, energia. Isso poderia colocar o Brasil na vanguarda. Mas o mercado internacional é ainda mais importante porque abre uma janela de oportunidades para vir muito dinheiro de fora”, diz Miguel Calmon, engenheiro agrônomo e diretor do programa de florestas da ONG World Resources Institute (WRI),
Carolina Prolo avalia que as novas diretrizes do acordo podem valorizar o mercado. “Uma vez que a gente crie as regras, o mercado começa se antecipar para se adequar a isso. É como uma especulação do bem, do mercado começar a gerar valor se antecipando a uma certeza de que vai haver um mercado formalizado depois.”
Apesar de um período de euforia inicial, o valor do crédito de carbono foi caindo até ser considerado a pior commodity do mercado. No começo de 2019 o preço chegou a um dólar por tonelada, tão baixo que tornava a viabilização de projetos impossível. A expectativa era que a regulamentação ocorresse em dezembro passado, durante as negociações da COP-25, em Madri, mas ela não foi correspondida.
Negociações emperradas
A discussão sobre a regulação do mercado de carbono apresentou tantos pontos de discórdia que tornou impossível chegar-se a um consenso em Madri. Na linha de frente do grupo que dificultou as negociações estava o Brasil. O país levantou argumentos que inviabilizariam a regulação do mercado. O primeiro deles é a preocupação com a legitimidade das reduções, ou seja, o risco de que créditos colocados no mercado não tenham se originado de reduções reais de emissões de GEE.
“A preocupação tem fundamento, mas o que não concordo é que este ponto seja impeditivo para avançar um acordo maior, isso dá para ficar num asterisco, em um parêntese”, avalia Metszker. “O que não pode é querer colocar isso como o grande vilão da história e impedir um acordo global que vai fazer bem para toda a humanidade.”
Outro ponto que causou polêmica foi a tentativa de alguns países de ratificar o chamado offset florestal. Nas últimas conferências, o Brasil sempre se colocou contrário à medida que colocaria as florestas preservadas como moeda de troca de créditos de carbono. No entanto, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles contrariou a posição histórica do país e declarou apoio à proposta. “Já tomamos uma decisão no Brasil, que é pró-negócio, de monetizar o ativo ambiental brasileiro”, disse Salles em entrevista ao jornal Valor Econômico. Em resposta, mais de 60 organizações – movimentos sociais, ONGs ambientais e entidades indígenas e de comunidades tradicionais – assinaram nota contra o offset florestal no artigo 6 do Acordo de Paris. Elas alegam que a medida é uma falsa solução e implica em perda da soberania do território – tanto para populações quanto para o Estado –, incentiva compradores de carbono a frearem suas ambições de redução de emissões e é proibida pela legislação brasileira.
O Brasil também foi duramente criticado por se opor à adoção de mecanismos para evitar a dupla contagem, que pode acontecer quando tanto o país que hospeda um projeto quanto o que paga por ele contabilizam os créditos gerados.
“Nós tivemos retrocessos muito grandes em Madri quando na verdade era para ser uma COP de avanços enormes em preparação para 2020, que é o ano que se começa a cumprir mesmo o Acordo de Paris”, avalia Calmon. “Em 2019, já deveríamos ter tido uma agenda bem mais ambiciosa com as NDCs para deixar o aumento de temperatura em 1,5°C. Quer dizer, perdemos um ano de oportunidades que precisam se acertar em 2020.”
Como o livro de regras para o mercado de carbono acabou não sendo definido na COP-25, especialistas acreditam o Fundo Verde para o Clima (GFC, na sigla em inglês) deve ser afetado, perdendo contribuições financeiras importantes. Ratificado na COP-16 – realizada em 2010, no México – o GFC conta hoje com US$ 10 bilhões doados por 43 países e visa promover projetos que ajudem os países em desenvolvimento a combater a emergência climática. “Mais uma vez vamos arrastar as negociações pro ano seguinte”, lamenta Metzker.
Cinquenta milhões de hectares degradados
Energias renováveis, agricultura de baixo carbono e recuperação de florestas são algumas das áreas que representam oportunidades para uma participação ativa do Brasil no mercado de carbono. A projeção de um cenário favorável abre caminho para a restauração de áreas degradadas, que engloba terras abandonadas, subutilizadas, ambientalmente prejudicadas ou em processo de erosão. Além do compromisso com o Acordo de Paris, em que o Brasil se comprometeu a reflorestar 12 milhões de hectares, o país também é signatário do Desafio de Bonn. Nele, 39 nações se dispuseram a reflorestar 350 milhões de hectares até 2030. No mundo todo, existem 2 bilhões de hectares degradados que precisam ser restaurados, de acordo com estudos da WRI.
“Para cumprir os 12 milhões de hectares que estão nas obrigações nacionais precisamos da Política Nacional de Restauração. Se houvesse dinheiro para fazer a restauração necessária no Brasil hoje, não teríamos viveiros produzindo todas essas mudas, então temos que criar essa cadeia de restauração”, alerta a bióloga Ludmila Pugliese, Coordenadora Nacional do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica.
Desde que o Novo Código Florestal foi sancionado, em 2012, a política ambiental perdeu força e viveiros que atendiam a uma série de programas pararam de produzir mudas. Com períodos maiores para se fazer a averbação da reserva legal e a restauração das áreas, muitos proprietários foram adiando os compromissos e os viveiros passaram a ter cada vez menos demanda. Grande parte faliu. Como resultado, hoje não há capacidade instalada para se ter todas as mudas necessárias. “O dinheiro vindo será importante para a criação desses viveiros, por exemplo. Tem que ser muito estruturada a maneira de pensar um planejamento maior para quando esse recurso [do mercado de carbono] entrar”, diz Pugliese.
E não são apenas viveiros que faltam. Outra dificuldade enfrentada na cadeia da restauração é a questão das sementes para as mudas. “De onde você coleta essas sementes nativas? Hoje quase não existem mais remanescentes de floresta”, diz ela. “Então tem que ser pensar em melhorar as condições de preservação dos fragmentos e evitar desmatamentos a todo custo para que se tenha uma matriz.”
Carolina Prolo também acredita que o Acordo, quando regulamentado, pode favorecer o desenvovimento do Brasil. “Temos todo o interesse que o mercado funcione o quanto antes, para já começar a acelerar esse processo, se antecipar para esse mercado e tomar decisões de investimentos que reflitam isso”, diz ela. “O potencial de reflorestamento é uma das frentes que esteve contemplada no texto de negociação na COP-25, para que se possa gerar créditos de carbono de reflorestamento de áreas degradadas.”
O Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável do Acordo de Paris deve trazer novas oportunidades para restauração, mas uma das críticas, no entanto, é de que os projetos podem incentivar monoculturas em vez de focar em espécies nativas. No MDL do Protocolo de Quioto, inicialmente, muitos projetos tinham uma perspectiva de gerar carbono florestal independente da origem, o que favoreceu monoculturas como Pinus e Eucalipto.
Para Metzker, esse não será um problema. “Eu acredito que aí entra a questão da maturidade. Com o passar do tempo as metodologias da Convenção Quadro das Nações Unidas foram evoluindo e começaram a também atribuir pontos na avaliação e auditoria para projetos que já pensavam em produção de água, em serviços ecossistêmicos, em biodiversidade”, avalia. “Então eu diria que essas lições aprendidas do MDL vão fazer a diferença hoje no MDS. Os projetos de reflorestamento que são monoculturas estarão dentro, mas os que contemplam plantio de florestas nativas também, com uma contabilização mais positiva.”
Não são só projetos de recomposição florestal que abrem caminho para investimentos estrangeiros. Segundo estudo publicado pela revista Science, o Brasil tem 50 milhões de hectares de áreas degradadas. São terras que não estão cobertas por zonas urbanas, florestas ou agricultura. Tornar essas áreas produtivas com sistemas agroflorestais também poderá gerar créditos de carbono.
Para Miguel Calmon, engenheiro agrônomo do WRI, a resiliência da agricultura brasileira no século 21 depende de práticas de baixo carbono, de restauração e da conservação do meio ambiente. Essas práticas podem garantir as chuvas e os polinizadores e melhorar o microclima. “Acho que temos uma grande oportunidade de compatibilizar a agenda da conservação e restauração com a agenda de sustentabilidade do agronegócio”, diz ele. “E mostrar para o setor privado, instituições financeiras e seguradoras que manter a vegetação nativa na paisagem de uma forma mais harmônica e recuperar áreas degradadas que hoje não produzem, pode ser a grande segurança da agricultura brasileira.”
Um caso de sucesso na restauração
O Pacto pela Restauração da Mata Atlântica nasceu em 2009, em um momento em que o Brasil ainda não dominava os processos necessários para sua restauração. A ideia era atender gargalos técnicos e metodológicos da área. Hoje ele conta com mais de 200 instituições parceiras que atuam nos diversos setores da cadeia – entre academia, governos, empresas e ONGs – e tem como objetivo restaurar 15 milhões de hectares de Mata Atlântica até 2050. Estima-se que o custo por hectare restaurado de Mata Atlântica fique entre R$14 mil e R$20 mil. Até 2019, foram contabilizados 970 mil hectares em processo de restauração através do programa, o que demonstra a efetividade do compromisso inicial de recuperar 1 milhão de hectares até 2020. O sucesso representa uma esperança. Projetos de restauração geralmente são pequenos, com um hectare em média, o que torna difícil alcançar grandes metas.
Em 2016, o Pacto trabalhou junto ao Ministério do Meio Ambiente a fim de criar um Plano Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa, uma iniciativa do Governo Federal para tentar identificar as principais barreiras da restauração. Foram listadas oito linhas estratégicas a serem trabalhadas. A primeira delas é a sensibilização das pessoas sobre a importância de se fazer restauração, os benefícios socioambientais e na mitigação das mudanças climáticas. Outra trata sobre financiamento da restauração e como conseguir recursos. Além dessas linhas, estão a necessidade da formação de mercado para produtos advindos da restauração; pesquisa e desenvolvimento para entender quais as melhores espécies para cada região; questões relacionadas ao mercado de sementes e mudas, já que não há a quantidade de viveiros necessários e a criação de um banco de dados; e uma plataforma para monitorar a restauração em todo território brasileiro. Com tantas frentes enumeradas, Pugliese acredita que os créditos do mercado de carbono só serão efetivos se forem aplicados de maneira ampla.
“Esse dinheiro deve ser não só para compras de mudas, mas para políticas públicas, para educação ambiental, estudos científicos”, diz Pugliese. “ Se esse recurso vem de uma forma estruturada para somar a um planejamento que vai além do plantio das mudas, há muita chance de dar certo.”
Existe também uma série de estudos que deve ser feita quanto à região a ser restaurada. A recuperação do Pacto é feita em áreas de baixa aptidão agrícola, portanto, não compete com a agricultura.
Pugliese lembra que são necessários ao menos 30 anos para que se tenha realmente uma área recuperada e seus serviços ecossistêmicos funcionando em sua totalidade.
O Brasil sempre esteve à frente nas metas de restauração. Tecnicamente, é um dos países que mais produzem conhecimento na área de restauração, não só de metodologia como também de governança. “O Pacto é um dos exemplos mundiais de como se trabalha com vários parceiros para atingir um objetivo comum. A gente tem inteligência, capacidade e estamos avançados no conhecimento das espécies. Na verdade, estamos estagnados na falta de vontade política e da pressão da sociedade para que isso saia do planejamento e seja implantado”, afirma Pugliese.
Ainda que venha a contar com altos investimentos, a restauração é um processo complexo e caro, que não deve anular a rígida proteção das florestas. “Uma coisa tem que ficar muito clara é que o reflorestamento não substitui o que existe de fragmento de floresta”, diz ela. “O primeiro passo é pensar nas UCs [Unidades de Conservação], na demarcação das terras indígenas que fazem um imenso trabalho de conservação, esse é o primeiro foco da escala de prioridades.”
Para o país que abriga a maior floresta tropical do mundo e uma das maiores extensões territoriais do planeta, o melhor negócio ainda é mesmo preservar.
Fonte: Adele Santelli – National Geographic
Nenhum comentário:
Postar um comentário