sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Fantasmas de antigos furacões habitam os buracos azuis do Caribe.

A ilha de South Andros, pertencente ao arquipélago das Bahamas, é um pedaço do paraíso cujas praias escondem tesouros geológicos sob a superfície: os buracos azuis. Nas profundezas desses etéreos buracos subaquáticos se encontram antigas rochas sedimentares cujas camadas indicam a remota passagem de furacões potentes.
A ilhota costuma ser parada obrigatória dos furacões com rumo ao Golfo do México ou à costa leste da América do Norte. Se tivessem acesso a toda essa biblioteca lítica, os cientistas poderiam voltar no tempo e comparar os furacões ocorridos hoje no Atlântico aos fantasmas de tempestades passadas.
Com métodos específicos e engenhosos, os pesquisadores extraíram dos buracos azuis diversas torres de sedimentos. Conforme informado este mês no periódico Paleoceanography and Paleoclimatology, foi extraída uma amostra cilíndrica contínua de 17 metros de comprimento que registra os encontros que a ilha já teve com os ciclones tropicais, num período de incríveis 1,5 mil anos.
Os sedimentos indicam que, no geral, apesar de certa oscilação na atividade, a Ilha de South Andros foi uma verdadeira rodovia para os furacões em boa parte do último milênio e meio. E, se por um lado a ilha recebeu a visita de dezenas de ciclones tropicais nos últimos 150 anos, somente dois furacões potentes a visitaram nesse período.
“Isso provavelmente não ficará assim”, explica a principal autora do estudo, Lizzie Wallace, mestranda pelo Programa Conjunto de Oceanografia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e da Woods Hole Oceanographic Institution. A recém-desenterrada história da ilha indica que a época de calmaria recente é, provavelmente, algo atípico e que a ilha pode estar apenas tendo muita sorte nos últimos tempos.
Com a Terra cada vez mais quente em função das mudanças climáticas causadas pelo homem, os furacões ficam mais úmidos, intensos e com mais força para inundar áreas litorâneas. Tendo em vista as revelações que a antiga amostra fez, parece provável que a ilha, assim como a região do entorno, corra grande risco de ser atingida por intensos furacões no futuro, risco esse maior do que mostram os registros dos equipamentos modernos.

Os caçadores da barca perdida

Os cientistas climáticos, sempre ávidos por mais dados, recorrem cada vez mais a uma grande variedade de fontes incomuns. Podemos citar, por exemplo, os registros climáticos feitos por navegantes do século 19, as alterações no sabor das uvas francesas e até mesmo o cocô de morcegos romenos.
O mesmo pensamento criativo está começando a valer para os furacões do passado. A Agência Nacional de Administração Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA) conta somente com registros de furacões no oceano Atlântico com datas a partir de 1851, de modo que os pesquisadores tentam encontrar traços de furacões mais antigos nos sedimentos primitivos.
Os ventos de um furacão costumam transformar o meio ambiente. Jeffrey Donnelly, supervisor de Wallace, notou que os sedimentos lamacentos presentes nos pântanos, lagos e lagoas de Massachusetts pareciam ser capazes de registrar o pandemônio. O mesmo acontece com os buracos azuis, cavidades formadas em rochas propensas à erosão e posteriormente inundadas, capazes de capturar grãos de areia e fragmentos maiores atirados em sua direção.
Muitos desses arquivos naturais de furacões, localizados em alguns pontos do Atlântico, do oeste da Flórida a diferentes regiões litorâneas do Mar do Caribe, já foram descobertos pelos pesquisadores. Mas a Ilha de South Andros, posicionada ao longo de uma já conhecida rota contemporânea de furacões e repleta de buracos azuis intocados, representava um atrativo especial para Wallace e sua equipe.

Esses abismos subaquáticos são fundos, estão localizados próximo a praias e corais, e ficam protegidos do mar aberto, o que lhes permite guardar séculos de sedimentos com o mínimo de rupturas e interrupções. Também apresentam baixos níveis de oxigênio, o que desencoraja formas de vida que poderiam se alojar e alterar a ordem das camadas.
Em visita à ilha no fim de 2014, a equipe tentou extrair amostras cilíndricas contínuas de diversos buracos azuis. Falar é fácil: as cavidades estudadas não se localizavam em águas profundas, o que impossibilitava o acesso de barcos equipados com sondas de perfuração. Em vez disso, a equipe de Wallace teve que construir sua própria plataforma de perfuração usando tubos de alumínio, tábuas de madeira e botes infláveis, que eram, então, rebocados até a superfície das áreas a serem amostradas.
Nem sempre funcionava, mas a equipe conseguiu, no fim das contas, extrair amostras de três buracos azuis, inclusive do portal de 95 metros de profundidade, responsável pela amostra de 17 metros de comprimento. As camadas responsáveis por contar a história dos furacões continham fragmentos de árvores de manguezais. Esse material foi submetido à datação por radiocarbono para revelar a data de cada furacão.

O século do silêncio

As amostras demonstram que ocorreu um número bem maior de furacões na ilha nos últimos 1,5 mil anos que o sugerido pelos registros de observação modernos. Outros estudos, analisando locais diferentes, chegaram a conclusões similares.
Tom Knutson, líder da Divisão de Dinâmica do Tempo e do Clima da NOAA, que não participou do estudo, diz que esse fato nunca deixa de surpreendê-lo. Só essa curiosidade, acrescenta ele, demonstra o valor das expedições nos buracos azuis.
A frequência de ocorrência dos furacões também oscila bastante, conforme observado em amostras extraídas em outros pontos do oceano Atlântico. Comparações com outras amostras mostram que a faixa de baixa pressão que cobre a região equatorial — a Zona de Convergência Intertropical ou ZCIT — desempenha um importante papel.
A zona se move para o hemisfério que estiver mais quente no dado momento, norte ou sul. Graças à longa tendência de resfriamento do Hemisfério Norte, a zona vem aos poucos mudando para o sul, nos últimos 8 mil anos. Porém, como que sobrepostas a esse movimento, ocorrem alterações repentinas e curtas, para cima e para baixo, com uma grande variedade de possíveis causas.
Ao se mover para o sul, a zona causa baixas temperaturas na superfície oceânica e ventos extremos na principal região produtora de furacões do oceano Atlântico, interrompendo a produção do fenômeno. De fato, os novos dados da equipe indicam que, nos períodos de inatividade de furacões na Ilha de South Andros, a faixa encontra-se numa posição mais ao sul.
O século 13, contudo, destacou-se pelo silêncio absoluto. De 1204 a 1273, não houve nenhum furacão significativo. Após 1273, a região foi “sacudida” por oito grandes ciclones, diz Wallace.
A equipe especula que a inatividade de quase um século talvez pudesse ser atribuída a um grande aumento, ainda não identificado, na atividade vulcânica. Essa ocorrência pode criar nuvens de ácido sulfúrico, com potencial de bloquear parcialmente a luz solar por alguns anos e dificultar bastante, pelo menos por algum tempo, a capacidade do mar de se aquecer e alimentar a formação de ciclones tropicais.
Os aerossóis de sulfato, quando em quantidade suficiente, podem ainda causar a migração da ZCIT, diz Matthew Watson, vulcanólogo da Universidade de Bristol, que não participou do estudo. Se, digamos, ocorresse um paroxismo vulcânico significativo no Hemisfério Norte, tal fato poderia forçar a ZCIT ao sul, para um terreno delicado no que diz respeito à formação de furacões.
Amostras cilíndricas de gelo do século 13 extraídas da Groenlândia e da Antártida, de fato, apontam para um aumento na quantidade desses aerossóis, o que corroboraria essa tese. Contudo um período diferente de aumento na quantidade de aerossóis corresponde a uma época de alta atividade de furacões na ilha. A menos que se possa indicar o vulcão responsável – uma tarefa reconhecidamente difícil – ainda é cedo para afirmar o que causou o silêncio a partir do ano de 1200.

Eterna caça aos fantasmas

Trata-se de um “conjunto fantástico de dados”, sendo “inédita” a existência de uma amostra de um buraco azul com 1,5 mil anos de dados, afirma Alexander Farnsworth, paleoclimatologista da Universidade de Bristol, que não participou do estudo. Esses dados, no entanto, ainda deixam uma grande lacuna na história dos furacões do oceano Atlântico.
A amostra não captura todos os furacões. As observações modernas de furacões locais, bem como os depósitos que eles deixaram ou deveriam ter deixado, revelam que somente os furacões de Categoria 3 — cujos ventos têm velocidade mínima de 177 quilômetros por hora — criam camadas identificáveis. Eventuais furacões mais fracos, mesmo os que tenham acometido a ilha diretamente, acabam não sendo documentados.
O registro obtido também só proporciona a contagem de furacões e a força mínima dos ventos; ele não revela mais detalhes das características dos ciclones. Além disso, trata-se de uma única amostra, de um grupo total pequeno. Serão necessárias muitas outras amostras, de todas as regiões do oceano Atlântico, para vermos quais pontos e padrões de dados se repetem ou não, afirma Farnsworth — argumento com o qual Wallace concorda.
O que é importante neste momento, diz Watson, é que esse conjunto de dados extraordinário pode ser divulgado à toda a comunidade científica. Alguns podem inclusive tentar encontrar o vulcão responsável pela calmaria do século 13, enquanto outros podem identificar as demais causas de movimentação da zona.
Tudo em seu devido tempo. Caçar os fantasmas submersos dos furacões é uma tarefa demorada, que os cientistas acabaram de começar.
Fonte: Robin George Andrews – National Geographic

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