sábado, 9 de novembro de 2019

Por que há mais plástico no Ártico do que em outros lugares da Terra?

MAR DA GROENLÂNDIA, A BORDO DO KRONPRINS HAAKON — Sobre um bloco de gelo no mar da Groenlândia, no alto do Círculo Polar Ártico, Ingeborg Hallanger aspira plástico.
Estamos em uma parte composta de “gelo fixo”, assim chamada porque permanece congelada em meio a um amontoado de icebergs presos a uma plataforma rasa na costa nordeste da Groenlândia. Uma superfície branca e acidentada, com poças de água azul de degelo e rachaduras, estende-se até o horizonte. As geleiras da Groenlândia brilham ao longe.
Hallanger, pesquisadora do Instituto Polar Norueguês em Tromsø, na Noruega, olha através de um buraco perfurado no gelo, que possui cerca de 90 centímetros de espessura, e introduz uma mangueira na água logo abaixo. Enquanto outros membros da expedição patrulham a área com espingardas para alertar sobre a presença de ursos polares, o que obrigaria todos a voltarem rapidamente para a embarcação atracada perto dali, Hallanger aciona uma bomba e começa a filtrar pequenas partículas da água do mar.
Aqui no Ártico, a centenas de quilômetros da cidade mais próxima, encontramos algumas das maiores concentrações de plástico do planeta. Estudos constatam concentrações mais altas de microplástico no gelo marinho nesses pontos remotos e de alta latitude do que nos cinco depósitos oceânicos de lixo conhecidos. Além disso, um relatório recém-publicado demonstra que microplásticos presentes no ar estão caindo junto com a neve no extremo norte.
A ecotoxicologista Hallanger pretende descobrir como o dilúvio de materiais sintéticos pode afetar a vida nos habitats à beira do gelo, que formam a base da teia alimentar nos oceanos.
“Se for verdade que o gelo está repleto de plástico, os organismos que vivem dentro e abaixo do gelo podem estar ocupando alguns dos espaços mais contaminados do oceano”, afirma ela.

Plásticos em todo o Norte

A área em que Hallanger está trabalhando é uma das partes mais poluídas com plástico do Ártico. Nessa passagem entre o leste da Groenlândia e as ilhas Svalbard da Noruega — um centro de correntes oceânicas chamado Estreito de Fram — um estudo recente encontrou mais de 12 mil partículas de microplástico por litro de gelo marinho. Esse valor é semelhante às concentrações mais altas relatadas que flutuam em costas urbanas poluídas. E ele é superado apenas pelas 14 mil partículas por litro recentemente encontradas na neve sobre o gelo marinho do Estreito de Fram.
Mas a invasão de plásticos no Ártico não se limita ao Estreito de Fram. Os cientistas têm encontrado microplásticos no extremo norte, do mar de Beaufort ao arquipélago canadense e às águas da Sibéria, e estão começando a entender por quê. As águas superficiais do oceano Ártico abrigam a maior parte dos plásticos de todas as bacias oceânicas. O número de partículas medidas em algumas partes do fundo do oceano Ártico são as mais altas do mundo. Fragmentos de materiais produzidos pelo homem estão aparecendo em meio à vida selvagem do Ártico, particularmente entre as aves. Em especial, uma espécie chamada fulmar-do-norte, que se parece com uma gaivota, se tornou um ímã para os plásticos.
“Todos os grupos de fulmares que examinamos no Ártico nos últimos 30 anos tinham plásticos”, diz Jenn Provencher, chefe da Unidade de Saúde Silvestre do Serviço de Vida Selvagem do Canadá.
Os cientistas estimam que até 12,7 milhões de toneladas métricas de lixo plástico sejam despejadas no mar todos os anos, sendo essa inundação de plásticos um problema global. Mas além de possuir algumas das maiores concentrações de microplástico do mundo, o Ártico, provavelmente, é muito mais vulnerável aos efeitos desse material devido às suas difíceis condições de vida, teia alimentar limitada e pelo fato de ser afetado por intensas mudanças climáticas.
“Estamos submetendo os animais que vivem nesse ambiente a um estresse cada vez maior”, diz Hallanger, que estuda exposições, rotas e impactos dos microplásticos em aves, raposas e outros animais do Ártico. “É possível que isso os faça entrar em colapso.”

A onipresença do plástico

De volta ao Kronprins Haakon, um navio quebra-gelo destinado a pesquisas do Instituto Polar Norueguês, Hallanger, o estudante de pós-graduação Vegard Stürzinger e eu decidimos conduzir um experimento improvisado com microplásticos. As amostras coletadas por Hallanger, que também contam com núcleos de gelo, pedaços de gelo “panqueca” recém-formado e água do mar mais profunda, terão que aguardar no laboratório do instituto, em Tromsø. Mas, aqui, filtramos várias amostras de gelo derretido, raspadas da superfície da banquisa por onde ninguém andou, e examinamos o material filtrado em um microscópio.
Os filtros ficam repletos de manchas vermelhas, azuis, pretas e amarelas, menores do que a borracha da ponta de um lápis — o tamanho máximo classificado como microplástico. A maioria parece ser fibra sintética, juntamente com algumas lascas e fragmentos.
Nosso procedimento não é nem um pouco científico. Não calibramos nossas medições, não padronizamos nossos métodos e não evitamos a contaminação, cuidados que Hallanger tomará em suas análises reais — embora estejamos em um laboratório limpo e lacrado, onde não são permitidas roupas sintéticas.
Contudo, é alarmante. “As quantidades são realmente altas!”, diz Hallanger sobre as manchas de plástico observadas.
De onde vem todo esse plástico encontrado no Ártico e como ele está entrando nesse ambiente supostamente intocado?

Plástico em movimento

Erik van Sebille, oceanógrafo da Universidade de Utrecht, na Holanda, está mapeando o movimento dos plásticos nos oceanos. Há tanto lixo no oceano Ártico que ele acredita que outro depósito de lixo esteja se formando no mar de Barents, acima da Noruega e da Rússia. Grande parte do lixo parece vir do noroeste da Europa e da costa leste da América do Norte.
Van Sebille supõe que os plásticos estejam se acumulando próximo ao limite meridional do oceano Ártico porque as águas do Atlântico que se deslocam para o norte esfriam e afundam nessa região, colocando em movimento um poderoso sistema de corrente oceânica chamado Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico. O plástico flutua e, portanto, fica para trás.
“Chamo isso de dejeto que não vai embora com a descarga”, diz van Sebille.
Mas a grande maioria dos microplásticos não está flutuando na superfície do oceano — estão misturados ao longo da coluna de água. E esses fragmentos submersos não estão apenas se acumulando no Ártico; também vão em direção à Antártida. Em um novo estudo, van Sebille e colegas descobriram que as correntes subterrâneas podem mover quantidades significativas de microplástico presentes em latitudes médias para os dois polos. Na verdade, ele diz, quando transportado por correntes subterrâneas, “o plástico tem muito mais chance de acabar nas regiões polares”.
Além disso, van Sebille descobriu que o plástico também está surfando nas ondas em direção aos polos, um processo de transporte marítimo conhecido como deriva de Stokes. Como a maioria dos modelos que fazem estimativas do plástico oceânico não leva em consideração o deslocamento causado pela deriva de Stokes, as concentrações no Ártico podem ser consideravelmente maiores, afirma ele.
Enquanto isso, o gelo marinho transporta e armazena grandes quantidades de microplástico no Ártico. Mas, com o gelo derretendo rapidamente, esse armazenamento deve ser considerado temporário, diz Ilka Peeken, bióloga marinha do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha da Alemanha.
Peeken, que estuda os efeitos das mudanças ambientais nos organismos que vivem no gelo do Ártico, encontrou 17 tipos diferentes de plástico no gelo — e as embalagens, pedaços de tampa de garrafa, tintas, nylon, poliéster e fragmentos que provavelmente foram bitucas de cigarro representam cerca de metade de todas as partículas. O nylon e a tinta provavelmente vieram de fontes locais, como equipamentos de pesca e navios, conta ela, ao passo que itens como embalagens e tampas de garrafa devem ter percorrido longas distâncias. Alguns podem ter escapado da Grande Mancha de Lixo do Pacífico e sido levados ao norte pelo Estreito de Bering. O lixo preso no gelo, recolhido pelo mar congelante, atravessa o Ártico na deriva Transpolar.
Agora, um novo estudo sugere que os microplásticos também estejam presentes nas correntes de ar, chegando ao Ártico na forma de neve revestida de plástico. Além de estarem presentes nas águas, essas partículas minúsculas e quase invisíveis podem ser inaladas, afirma a autora do estudo Melanie Bergmann, ecologista marinha do Instituto Alfred Wegener.

Possibilidades nada animadoras

Sabe-se relativamente pouco sobre o impacto da poluição dos plásticos nos ecossistemas do Ártico. Além das aves, foram encontrados microplásticos no estômago de algumas espécies de peixes polares, além de mexilhões-azuis, caranguejos-da-neve e estrelas-do-mar que habitam o fundo do oceano, de acordo com um recente relatório sobre lixo marinho no extremo norte, do Proteção do Ambiente Marinho Ártico (PAME), grupo de trabalho do Conselho do Ártico.  Mas poucas pesquisas foram realizadas nessa região remota e desafiadora e, embora experimentos tenham encontrado danos, como comportamento alterado em peixes expostos a microplásticos, os estudos até o momento não revelaram impactos na saúde animal em nível populacional.
No entanto, observa Hallanger, estudos laboratoriais demonstram que os produtos da decomposição dos microplásticos, que são ainda menores, os chamados nanoplásticos, podem atravessar a parede celular. Eles podem penetrar a barreira hematoencefálica. Podem até mesmo atravessar a placenta e atingir o feto. E as condições do Ártico podem ser especialmente propícias à transformação de microplásticos em nanoplásticos. Essas condições consistem no congelamento e degelo, na redução de tamanho pela ação do gelo e na ação dos fortes ventos e ondas.
“É assustador”, diz Hallanger.
Como é o caso em outros lugares, a possibilidade de o plástico ir parar nos alimentos é uma grande preocupação por aqui. Ingeridos por pequenas criaturas na parte inferior da teia alimentar, os microplásticos podem sofrer “aumento biológico” à medida que esses organismos são ingeridos por organismos sucessivamente maiores — chegando, em algum momento, até os humanos.
E os plásticos estão, de fato, sendo consumidos pelo homem. Um novo estudo constata que os norte-americanos ingerem até 52 mil partículas de plástico por ano em alimentos e bebidas — e esse número sobe para 121 mil quando os plásticos inalados são considerados.
Além disso, van Sebille descobriu que o plástico também está surfando nas ondas em direção aos polos, um processo de transporte marítimo conhecido como deriva de Stokes. Como a maioria dos modelos que fazem estimativas do plástico oceânico não leva em consideração o deslocamento causado pela deriva de Stokes, as concentrações no Ártico podem ser consideravelmente maiores, afirma ele.
Enquanto isso, o gelo marinho transporta e armazena grandes quantidades de microplástico no Ártico. Mas, com o gelo derretendo rapidamente, esse armazenamento deve ser considerado temporário, diz Ilka Peeken, bióloga marinha do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha da Alemanha.
Peeken, que estuda os efeitos das mudanças ambientais nos organismos que vivem no gelo do Ártico, encontrou 17 tipos diferentes de plástico no gelo — e as embalagens, pedaços de tampa de garrafa, tintas, nylon, poliéster e fragmentos que provavelmente foram bitucas de cigarro representam cerca de metade de todas as partículas. O nylon e a tinta provavelmente vieram de fontes locais, como equipamentos de pesca e navios, conta ela, ao passo que itens como embalagens e tampas de garrafa devem ter percorrido longas distâncias. Alguns podem ter escapado da Grande Mancha de Lixo do Pacífico e sido levados ao norte pelo Estreito de Bering. O lixo preso no gelo, recolhido pelo mar congelante, atravessa o Ártico na deriva Transpolar.
Agora, um novo estudo sugere que os microplásticos também estejam presentes nas correntes de ar, chegando ao Ártico na forma de neve revestida de plástico. Além de estarem presentes nas águas, essas partículas minúsculas e quase invisíveis podem ser inaladas, afirma a autora do estudo Melanie Bergmann, ecologista marinha do Instituto Alfred Wegener.

Possibilidades nada animadoras

Sabe-se relativamente pouco sobre o impacto da poluição dos plásticos nos ecossistemas do Ártico. Além das aves, foram encontrados microplásticos no estômago de algumas espécies de peixes polares, além de mexilhões-azuis, caranguejos-da-neve e estrelas-do-mar que habitam o fundo do oceano, de acordo com um recente relatório sobre lixo marinho no extremo norte, do Proteção do Ambiente Marinho Ártico (PAME), grupo de trabalho do Conselho do Ártico.  Mas poucas pesquisas foram realizadas nessa região remota e desafiadora e, embora experimentos tenham encontrado danos, como comportamento alterado em peixes expostos a microplásticos, os estudos até o momento não revelaram impactos na saúde animal em nível populacional.
No entanto, observa Hallanger, estudos laboratoriais demonstram que os produtos da decomposição dos microplásticos, que são ainda menores, os chamados nanoplásticos, podem atravessar a parede celular. Eles podem penetrar a barreira hematoencefálica. Podem até mesmo atravessar a placenta e atingir o feto. E as condições do Ártico podem ser especialmente propícias à transformação de microplásticos em nanoplásticos. Essas condições consistem no congelamento e degelo, na redução de tamanho pela ação do gelo e na ação dos fortes ventos e ondas.
“É assustador”, diz Hallanger.
Como é o caso em outros lugares, a possibilidade de o plástico ir parar nos alimentos é uma grande preocupação por aqui. Ingeridos por pequenas criaturas na parte inferior da teia alimentar, os microplásticos podem sofrer “aumento biológico” à medida que esses organismos são ingeridos por organismos sucessivamente maiores — chegando, em algum momento, até os humanos.
E os plásticos estão, de fato, sendo consumidos pelo homem. Um novo estudo constata que os norte-americanos ingerem até 52 mil partículas de plástico por ano em alimentos e bebidas — e esse número sobe para 121 mil quando os plásticos inalados são considerados.
Mas o Ártico não é como outros lugares. A poluição dos plásticos apresenta um problema especial aqui, pois a região é lar de muitas pessoas que dependem quase inteiramente do ecossistema marinho para sua alimentação e cultura.
“No Ártico, a cadeia alimentar marinha está muito ligada ao consumo humano”, diz Provencher. “Se o plástico passa a estar presente nas espécies… e se existem pessoas que dependem dessas espécies como fonte de alimento, o efeito negativo pode ser muito mais amplo do que em diversas outras regiões do mundo.”
Peter Murphy, coordenador regional no Alasca do Programa de Detritos Marinhos da Agência Norte-Americana de Administração dos Oceanos e da Atmosfera (NOAA), concorda.
“A subsistência no Alasca é uma questão e uma preocupação reais porque, em muitas comunidades, a maior parte das calorias ingeridas é proveniente das terras e águas que os cercam”, diz ele sobre os grupos indígenas da costa e das ilhas do Alasca.
A poluição dos plásticos nessas áreas representa “um impacto muito mais linear”, diz ele. Um estudo de 2015-17 que avaliou a quantidade de microplásticos na areia das praias do Parque Nacional dos EUA descobriu que o nível de poluição em alguns litorais remotos do Alasca era semelhante ao observado em uma área altamente povoada perto da Ponte Golden Gate, em São Francisco.
Até o momento, não há evidências claras de que a poluição dos plásticos aumente dentro da teia alimentar ou que represente um risco para as pessoas que consomem frutos do mar. Mas uma nova e grande iniciativa será lançada em breve para monitorar a poluição e os efeitos do plástico no Ártico. Liderado pela Islândia, após o país ter assumido a presidência do Conselho do Ártico, o projeto será um grupo de trabalho especial do Programa de Monitoramento e Avaliação do Ártico. Hallanger e outros fazem parte do projeto.
Ainda há muito a ser descoberto sobre as consequências dessa triste onipresença do plástico, dizem os cientistas que estudam o Ártico.
“Realmente não temos controle”, afirma Hallanger, contemplando, do navio, um bloco de gelo onde aves marinhas buscam peixes.
“O Ártico é o lugar ideal para mostrar que esse é um problema global”, diz ela. “E o mundo todo precisa fazer algo a respeito.”
Fonte: Cheryl Katz – National Geographic

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